Capítulo 36

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− Agora não largas esse diário? – pergunta a Analu ao entrar no quarto.

A minha amiga não deixa de ter uma certa razão. Já passaram duas semanas desde que o Salvador me trouxe este diário e todos os minutos que tenho livres dedico-os a ler as palavras da minha bisavó. Basicamente, tenho passado o meu tempo entre a enfermaria, o refeitório e o meu quarto.

Mal falo com a Olívia e com a Maria. Com a Maria tenho que falar um pouco mais, é claro, afinal de contas trabalhamos juntas. Mas falamos apenas o indispensável. E quanto ao resto da comunidade, limito-me a ignorar. Ignoro os olhares, os comentários, os suspiros... ignoro tudo. Sinto-me a vaguear quando estou entre elas, as pessoas que antes considerava como família. Achava que fazíamos todos parte duma grande família unida e feliz, porém enganei-me. Vagueio como se essa parte da minha vida fosse apenas um sonho, e eu não estivesse realmente lá. Só vivo quando estou no meu quarto, mergulhada nas páginas que me transportam para o mundo da minha bisavó.

No fundo, vivo uma vida que não é a minha. Porque a minha, tiraram-ma sem qualquer aviso prévio.

Tenho saudades de mim mesma. Tenho saudades da parte de mim que perdi quando me rejeitaram. Quando todos olharam para mim como se eu fosse um ser alienígena, um ser que veio de uma outra realidade qualquer. Mas aquilo de que eu tenho mais saudades é do tempo em que eu passava com o Salvador. Agora mal nos vemos. É para o meu próprio bem, diz ele. Durante estas duas semanas que se passaram, só conseguimos estar sozinhos no meu quarto a conversar duas vezes. Não é que ele não tenha tentado mais. Acontece que as pessoas andam de olho em nós e, dificilmente, ele consegue chegar perto da minha porta sem ser intercetado e repreendido antes.

As duas vezes que estive com ele, souberam a pouco. E não posso dizer que seja a mesma coisa. Evitamo-nos mutuamente, eu sinto isso. Eu sei que estou mais distante dele, mas ele também o está de mim. Talvez ele tenha chegado à mesma conclusão que eu. É mais seguro se não nos tocarmos, se não nos rirmos cumplicemente, se não nos olharmos intensamente. Só que isso faz-me sentir longe de mim mesma. Se eu não fizer aquilo que quero e sinto, o que serei eu senão um ser sem alma, sem vida?

É por isso tudo que me agarro, com tanta força, ao diário que tem sido o meu porto seguro. A minha forma de continuar em frente mantendo-me exatamente no mesmo lugar.

Rio-me, choro, suspiro com cada nova passagem do diário. Sinto-me cada vez mais próxima da realidade que a minha bisavó colocou em palavras. Estou maravilhada com a forma como ela deu a volta à situação, como ela conseguiu continuar a viver depois de ter perdido o meu bisavô. E vou percebendo cada vez melhor a relação forte que existia entre a minha bisavó e o meu avô Hélio. Eles foram, literalmente, tudo, um para o outro.

Não paro de pensar que esta foi a altura certa. Ler o diário, perceber o que aconteceu com a minha bisavó, nesta altura em que estou a sentir-me desamparada, só me fez identificar mais com ela. Não digo que seja a mesma coisa. Ela perdeu para sempre a pessoa que mais amava, eu só perdi o meu lugar na comunidade, só perdi um pouco de mim mesma, e não significa que não volte a encontrar-me. Ela nunca mais pôde vê-lo, senti-lo, falar com ele. Ela não perdeu uma pequena parte dela, perdeu a sua metade e para todo o sempre. No entanto, sei que se não estivesse a passar por toda esta situação, não veria com os mesmos olhos o seu mundo.

− Tu sabes que isto, − digo levantando o diário do meu colo e apontando-o para a Analu, − é tudo para mim, neste momento.

Eu contei à Analu sobre o diário. Não lhe disse que haviam mais, porque isso podia fazer com que ela quisesse saber onde estão os restantes, o que poderia levantar problemas. Basta que ela saiba que agora vou passar o meu tempo dedicada à minha bisavó. Isso é o suficiente para que me possa compreender.

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