Avanço, sem medos, sem hesitações.
Eu tenho que tentar fazer alguma coisa. Pode não dar em nada, mas pelo menos tentei. Não me limitei a ficar de braços cruzados.
Percorro o refeitório determinada. Cada passo que dou parece demorar uma eternidade. Ando, ando, ando. E a minha mente processa cada passo tão lentamente, que parece que não estou mais próxima do meu alvo.
Paro.
Já cá estou, e agora?
Poderia voltar para trás. Nenhum dos presentes da mesa que está diante de mim reparou ainda que estou tão perto deles. Se repararem poderei dizer que me equivoquei, que estava baralhada, que dormi mal.
Não, não posso vacilar agora.
Abro a boca e digo num tom confiante:
− Posso falar consigo, 2º Comandante?
Hoje, quando estive na sala secreta, emocionei-me ao ver quão contentes todos estavam pelos produtos de higiene que lhes tinha arranjado. Estavam todos tão limpos, que mal podia acreditar no que os meus olhos viam. Se estivessem sempre assim, as doenças seriam menos frequentes por aqueles lados. O problema é que não há recursos para pessoas que supostamente não existem.
Não têm direito a comida, a produtos de higiene, a água, a medicamentos, a roupa lavada, a uma cama para cada um deles... Não têm direito à vida. Lutam todos os dias por ela, numa batalha desigual.
O pior de tudo é que a nave tem recursos mais do que suficientes para todos nós. Então, é simplesmente injusto.
Eu sei que não posso contar a verdade. Não posso dizer a ninguém que eles existem, que eles sofrem. Eu sei disso. Mas isso não me impede de os tentar ajudar de todas as formas possíveis e imagináveis.
− 2º Comandante, há algum tempo que tenho vindo a pensar no desperdício de recursos que são usados nos check-ups mensais – digo quando já nos encontramos os dois na grande sala central, afastados de olhos curiosos.
− Como assim, rapariga? Que disparate é esse?
− O senhor pode não me reconhecer, mas eu trabalho na enfermaria. Sei do que falo.
− Estou a ver... És a filha dos Bacelar, não és? Deste muito que falar na última reunião semanal.
− Sim, sou eu, − respondo ligeiramente constrangida por ser apenas essa a recordação que associa à minha pessoa. Na verdade, não deve ser o único. – Eu estive a fazer as contas. São muitos os meses onde não se encontra rigorosamente nada. Só de 3 em 3 meses se encontram até 2% dos casos analisados com algum tipo de enfermidade. Talvez por trimestres fosse mais útil. Na enfermaria não precisaríamos de estar tão focalizadas nos check-ups, dando prioridade a outros assuntos, gastar-se-ia menos energia para esterilizar os materiais e estes durariam mais tempo, fazendo com que o laboratório de saúde não tivesse de estar sempre a construir substitutos, ganhando, por sua vez, tempo para criarem novos medicamentos.
Vejo o 2º Comandante a hesitar. A pensar, de facto, em todos os argumentos que lhe apresentei. Isso já é alguma coisa, significa que não considera um disparate total aquilo que lhe acabei de dizer. Faz sentido, tem lógica e não se perde nada com isso, só se ganha. Então a resposta dele só pode ser uma.
− Bom... Faz... Faz algum sentido. Mas não acha que estaríamos a arriscar demasiado? Com um maior período entre as análises o risco de alguém ficar doente sem ninguém se aperceber disso passa a ser maior? E, consequentemente, a intervenção poderá já não vir a tempo.
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Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...