Há uma semana que já não falo com ele. Não posso dizer o mesmo dos meus pensamentos, que sempre que estou um pouco mais distraída, sem nada que fazer, acabam por se voltar para o Salvador, o que é extremamente irritante! Mas pelo menos estou a tentar dar menos importância a esta história maluca em que fui parar, e à qual nem conheço o título. Mas o Salvador não facilita.
Parece que agora o encontro em cada esquina. Quando o queria seguir, era muito mais difícil de o encontrar. Acho que faz sentido: agora que não o quero ver (nem ele a mim), vejo-o a toda a hora. É irónico, diria.
Há medida que os dias foram passando, também a raiva e a mágoa se evaporaram. Não diria por completo, mas as palavras que tanto me doeram ouvir e recordar, vezes e vezes sem conta, ganharam um novo significado para mim. Talvez por as ter ouvido tantas vezes na minha mente.
O peso das palavras acabou por diminuir, dando espaço para que eu fizesse o que eu quisesse com elas. Pensei: Se eu tenho tanta dificuldade em acreditar em tudo o que o Salvador me diz, porque acreditei eu tão rapidamente naquelas suas palavras frias?
É tarde demais, Salvador. Já não consigo esquecer. Nunca iria conseguir esquecer.
Por muito que tente convencer-me a mim mesma que é melhor deixar esta história toda para trás, a verdade é que já entrei nela e não faço tenções de ficar parada no segundo parágrafo. Agora, quero saber o fim.
É por isso que quando vejo o Salvador a descer ao piso inferior da nave, o decido seguir.
No piso inferior encontram-se apenas as máquinas e as reservas de materiais importantes para a pesquisa e para a nossa sobrevivência. Existem pessoas que trabalham neste piso, normalmente pessoas que pertencem à hierarquia inferior da nave, mas é estranho o Salvador se dirigir para esta zona.
Suponho que possa ir entregar alguma mensagem ou ir buscar algum material que lhe pediram nos laboratórios. Mas, mesmo assim, decido dar uma benesse ao meu instinto, que tantas vezes me tem falhado, e sigo-o mais uma vez, na esperança de esta ser a jogada que me vai levar à casa final do tabuleiro.
Sigo-o cuidadosamente, não posso dar agora nenhum passo em falso.
Move-se agilmente por entre os corredores estreitos e escuros, que me são estranhos. Move-se como se já tivesse feito este percurso milhares de vezes, sem qualquer hesitação, sem qualquer receio. Diria que o peixe fora de água sou claramente eu.
Está demasiado escuro, mal consigo ver as paredes que delimitam os estreitos corredores por onde avançamos velozmente. Não penso, apenas tento imitar cada movimento exato do Salvador.
Ele para, finalmente, junto a uma parede. Fita-a como se significasse alguma coisa e não fosse apenas mais uma das imensas paredes cinzentas e gastas porque passámos no percurso até aqui. Percurso, esse, que duvido que conseguisse repetir sozinha, se tivesse, de repente, de fugir deste homem que se encontra à minha frente, e do qual nada sei, a não ser que é capaz de roubar, mentir e enganar.
Estremeço com a possibilidade.
O Salvador olha para trás para garantir que ninguém o vê. Talvez me tivesse visto, se não tivesse tão escuro aqui e se eu não estivesse tão longe dele, escondida atrás dum dos grandes pilares que sustentam o teto da nave aqui nesta zona.
Ele pode não me ver, mas eu vejo-o.
Vejo-o a levantar uma pequena tampa, que se encontra na base da parede e que é da cor desta, e a digitar qualquer coisa.
Oiço um bip subtil e quase inexistente, mas, ainda assim, sei que o ouvi e que também ele o ouviu.
Uma porta, magicamente, desenha-se naquela parede tão simples, que iria jurar que era igual a tantas outras. E o Salvador desaparece por detrás da parede, que afinal significava um pouco mais do que realmente aparentava.
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Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...