Capítulo 46

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Avanço pelo longo corredor e sorrio. Não pela sessão de jogo a que acabei de assistir, que em nada contribuiu para a minha felicidade. Não posso dizer que tenha sido má. Não estava lá nem a Olívia, nem o Matias, nem o Leandro, e isso foi o suficiente para eu, pelo menos, descontrair um bocadinho e aproveitar em pleno a companhia agradável dos meus avós paternos.

Não, o que me faz sorrir são as quentes e saborosas recordações dos momentos que eu e o Salvador partilhámos ontem e hoje, como namorados. Sim, como namorados, porque é isso que somos agora. Foram apenas dois dias, mas foram os melhores da minha vida. E espero, muito sinceramente, que ainda tenhamos muitos pela frente. Uma eternidade de beijos, palavras doces sussurradas, abraços e toques que me deixem extasiada.

− Quem é viva sempre aparece! – exclama a Analu assim que me vê entrar pela porta do quarto. Está na minha cama sentada sobre as próprias pernas fletidas com um livro aberto entre as mãos. O seu corpo pequeno e esguio está voltado na minha direção, o que me permite facilmente vislumbrar a capa do livro que segura.

− O que estás a fazer com o meu livro?

− Disseste-me que o podia ler.

− Sim, há sete anos atrás, quando o acabei de ler pela primeira vez. E lembro-me de ter insistido durante dias a fio, e nunca mostraste o mínimo interesse − saliento ao sentar-me ao seu lado na cama.

− Bom, estava sem nada para fazer e apetecia-me estar com a minha melhor amiga. Mas acontece que ela não apareceu ao final da tarde como é costume. Fui jantar e nada, sem sinal nenhum dela. Fiquei quatro horas à espera! Por isso, agarrei-me a este estúpido livro para ver se me sentia mais perto dela.

− Ei! Não o insultes! – Tiro-lhe o livro da mão e agarro-o protectoramente entre os braços. – Ao menos resultou?

− Nem por isso! Não percebi nem metade. Além disso, não esperam mesmo que alguém acredite na existência de uma pessoa como esse tipo! Por amor de Deus! É impossível alguém ser assim tão forte, inteligente e indestrutível. E acaso existiam mesmo ciclopes no planeta Terra?

− Para mim não importa se é real ou não.

− A sério que não percebo. Porque gostas tanto desse livro?

− Porque foi a minha bisavó que mo deu e nunca me vou esquecer das palavras que me dirigiu nesse dia: "Devemos lutar por aquilo que acreditamos, sem nunca esquecer aqueles que amamos. Podemos lutar contra ventos e tempestades, mas o nosso coração só vai estar completo quando estivermos do lado de quem mais amamos."

− E ao menos esse tal Ulisses conseguiu voltar para junto da mulher e do filho?

− Se estás interessada na resposta a essa pergunta, é porque o livro não foi assim tão desinteressante quanto isso. Toma. – Estendo o livro na sua direção. – Ele não morde! – acrescento ao vê-la retrair-se ao meu lado.

− Eu sei que não! – A Analu analisa o livro por um longo momento e percebo que reflete a minha proposta. Encara-a tão seriamente como se de um quebra-cabeças se tratasse. Um quebra-cabeças cuja resposta ela não quer de todo errar. – Acho que mal não me vai fazer − decide, ainda assim pega no livro de forma hesitante.

− Vais ver que não te vais arrepender. Ulisses é um exemplo de coragem que é impossível não admirar.

Durante muito tempo pensei que o que a minha bisavó me queria transmitir quando me deu a Odisseia de Homero era o grande valor e peso que a família deve ter na nossa vida. Que independentemente do que aconteça, a família deve ser o nosso centro. Mas talvez fosse mais do que isso.

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