Capítulo 47

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Olho enternecida para o homem que tenho diante de mim. Encontra-se sentado no chão com as pernas fletidas num ângulo superior a 90º. Sobre os joelhos repousa um livro aberto, que ele ampara com as mãos. A cabeça está ligeiramente inclinada para a frente, os olhos bebem cada palavra sofregamente e os cantos da boca sobem gradualmente à medida que avança pelo texto.

− Obrigado, Aurora. – O Salvador fecha o diário e fita-me com os olhos rasos de água. – Isto significa muito para mim.

− Não queria que ficasses triste. – Impulsiono-me para a frente e ajoelho-me do seu lado. Todo o peso do meu corpo é transferido para as minhas pernas, que servem de base. O suave tecido das suas calças é pressionado pelos meus joelhos desnudos. E enquanto deixo a minha mão esquerda repousar sobre as minhas bermudas de ganga, a mão direita afaga o rosto bem delineado do Salvador.

− Não estou triste. Muito pelo contrário, estou feliz porque isto fez-me sentir...

− Mais próximo do teu avô − completo como sugestão.

− Sim, isso mesmo.

Pouso os meus lábios docemente sobre os dele, que os recebe sem qualquer hesitação.

− Não achas curioso que se tenham conhecido desta forma? – questiono ao pousar a minha mão direita em cima do diário fechado que continua em repouso nas pernas do Salvador. – Talvez tivesse sido tudo muito diferente se o teu avô não tivesse conseguido esconder o segredo da minha bisavó.

− Sim, de certo que seria. Mas o meu avô só descobriu muito mais tarde que poderia confiar na tua bisavó. Na verdade, foi demasiado tarde. – Um silêncio pesado instala-se entre nós os dois. A mão do Salvador agarra-se fortemente à minha e ficamos os dois a amparar o frágil diário de papel que tantas verdades ocultas revela. – Ele falava-me sempre muito bem dela, sabes? Da tua bisavó − acrescenta com os olhos perdidos no vazio à sua frente. – Ele admirava-a. Admirava a sua coragem e determinação.

− Espera aí! Como é que ele a admirava? Ele nem sabia... − Vacilo. A minha bisavó confrontou-o antes da nave descolar. Ele sabia que ela era alguém importante, talvez ela até lhe tenha revelado o seu papel no projeto quando o interrogou, como que a justificar porque é que era ela que o estava a fazer. Ela não queria que ninguém soubesse, mas aquele incidente estragou-lhe os planos. – Ele sabia − constato estupefacta. – Ele sabia quem era a minha bisavó. E se ele sabia, se ele te falava dela dessa forma, então... − Num movimento brusco afasto a minha mão da dele. – Tu também sabias, não sabias?

Fito-o obstinadamente. Os seus olhos nada revelam. A sua boca mantem-se fechada. Por momentos, sinto que estou na presença do outro Salvador. Aquele que escondia segredos de mim. Aquele que escondia o que sentia, o que pensava. Aquele que nada mais era do que um completo estranho para mim.

− Responde-me − grito enfurecida, sem me lembrar de onde estamos. A consciência de que o pai do Salvador pode estar na zona das máquinas, a uns meros metros deste espaço, chega tarde demais para evitar a subida descontrolada do meu tom de voz. – Tu sabias? – pergunto num simples murmúrio.

O Salvador anui com um gesto lento e quase impercetível da cabeça.

Lágrimas assomam-me aos olhos e eu faço a única coisa de que me sinto capaz de fazer neste momento: levanto-me e fujo dele.

− Aurora, espera! – ouço-o gritar em desespero. Aparentemente, também ele não se lembra da presença do pai no espaço adjacente a este. Ou talvez, não se importe com isso. Estaco. Por muito triste e desiludida que me sinta, preciso de ouvir o que ele tem para me dizer. Mais uma vez, é a minha curiosidade que ganha. O orgulho? O orgulho já o perdi há muito.

AuroraOnde histórias criam vida. Descubra agora