Fecho a porta atrás de mim e, com as pernas ainda bambas, forço-me a avançar pelo longo corredor em que me encontro. O Salvador ficou de sair uns minutos mais tarde para não corrermos o risco de alguém nos ver sair juntos do mesmo quarto.
De facto, o corredor está mais cheio agora do que há pouco. A maioria das pessoas que passa por mim segue em direção à grande porta que dá acesso à sala central, tal como eu. O refeitório a esta hora já serve refeições, então é normal que assim seja.
Entre o mar de vultos, consigo rapidamente distinguir a silhueta dos meus avós maternos, que apesar de distantes, não me poderiam passar despercebidos. Estão de mãos dadas. O meu avô inclina-se ligeiramente na direção da mulher para a ouvir melhor. A estatura diferenciada deste casal chamaria qualquer um à atenção. O meu avô é uns trinta centímetros mais alto do que a minha avó, que tem apenas um metro e meio de altura. No entanto, as dissemelhanças não ficam por aí. O meu avô tem uns curtos cabelos completamente grisalhos que contrastam com os cabelos ondulados meio ruivos, meio brancos da minha avó. E a pele morena do meu avô parece a sombra da pele demasiado branca da mulher. A esta distância parecem um casal estranho, demasiado diferentes para se encaixarem. Mas a verdade é que por dentro são tão iguais, que só podiam ser feitos um para o outro. Ambos foram mesquinhos e insensíveis ao se manifestarem contra a própria filha, só porque não queriam que esta casasse com o neto de uma louca.
Volto a lembrar-me da história que o Salvador me revelou ontem à noite. Todos ficaram contra a minha bisavó, inclusive os meus avós maternos. O único que a tentou defender foi o avô do Salvador. Mas ele sabia a verdade, ou, pelo menos, desconfiava. Porque haveriam todos os outros de acreditar numa mulher que mal conheciam?
Estaco. Havia mais uma pessoa que conhecia bem a minha bisavó e sabia que esta dizia a verdade. Como é que não me lembrei disso antes? A Sra. Prazeres era a sua melhor amiga, ela sabia melhor do que ninguém quem era a minha bisavó.
Recomeço a andar, mas, desta vez, na direção contrária à multidão.
− Posso entrar? – Pergunto espreitando pela penumbra da porta.
− Claro, Aurora. Ia agora sair para jantar, mas prefiro passar um tempo na tua agradável companhia antes.
Entro no quarto e fecho a porta atrás de mim. A Sra. Prazeres encontra-se de pé perto da cama. Enverga um simples vestido roxo que lhe chega quase até aos pés e é largo o suficiente para disfarçar a sua figura franzina.
− Vou ser direta, − começo, sem avançar nem um único passo na sua direção. – Porque é que não defendeu a minha bisavó quando a acusaram de louca? Você sabia perfeitamente que tudo o que ela dizia era a mais pura das verdades.
− Então também já descobriste essa parte da história. Mais tarde ou mais cedo isso ia acontecer, é claro! – A Sra. Prazeres senta-se na grande e vazia cama de uma forma tão serena e calma, que me sinto vacilar. Quando entrei neste quarto estava preparada para desmascarar uma feiticeira terrível, como Circe, aquela que enganou todos os companheiros de Ulisses. Porém, agora já não tenho assim tanta certeza das malignas intenções ocultas desta mulher. Talvez haja uma explicação plausível, penso. − É melhor sentares-te para que te possa contar a minha história − sugere. Acedo ao seu pedido gentil e sento-me do lado dela. – Quando a tua bisavó me contou todos os seus planos para a humanidade, fiquei eufórica. A ideia de construir uma vida longe da podridão que invadira o nosso planeta era demasiado aliciante.
"O que eu mais desejava na altura era ser mãe, mas não o podia ser. Não naquele planeta. Não podia ser egoísta ao ponto de fazer com que o meu próprio filho vivesse num mundo violento, doente e cansado, que nada de bom lhe traria. Mas depois tudo mudou. Comecei a fazer planos com o meu marido. A pensar numa vida ideal, com que nunca ousara sequer sonhar, e que poderia, por fim, tornar-se real.
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Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...