Capítulo 39

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Pensarão que sou doida, talvez, aqui, sentada no chão da grande sala central, encostada a uma das paredes frias e monumentais deste espaço hexagonal. Estrategicamente posicionada de forma a poder ver qualquer pessoa que saia do refeitório. No entanto, sei que a esta hora não são muitas as pessoas que poderão sair de lá.

A maior parte das pessoas que passa por mim ignora a minha presença. Como se de alguma forma, apesar do pouco tempo em que aqui estou, já me tivesse fundido à parede branca a que estou encostada. Alguns fitam-me demoradamente com estranheza, outros com pura curiosidade. Devem pensar: "O que estará ela a tramar desta vez?". Mas todos evitam permanecer neste espaço, mais tempo do que o necessário.

A verdade é que já não me importo. Condicionei as últimas semanas da minha vida de acordo com o que os outros queriam ou achavam que eu havia de fazer dela. A minha bisavó, numa das passagens do seu diário, referiu que o ser humano perante uma ameaça tem uma de duas respostas: ou foge, ou luta. E eu já me cansei de fugir.

A breve conversa que tive com a Sr.ª Prazeres funcionou como um desbloqueador. Depois de muito agitada pelas palavras da minha bisavó, as da Sr.ª Prazeres deram-me o empurrão de que precisava para seguir em frente.

Vejo, finalmente, o Salvador sair do refeitório. O sangue que me corre nas veias parece começar a fervilhar e o meu coração bombeia-o mais rapidamente para compensar a rápida perda de oxigénio. Num impulso, provocado certamente pelo excesso de adrenalina, levanto-me agilmente e corro para ele.

Um sorriso genuíno, daqueles que chegam até aos olhos, desenha-se no rosto do Salvador quando percebe que sou eu a criatura que se move velozmente na sua direção. Percebo que o seu corpo relaxa imediatamente, talvez na simples constatação de que não sou uma ameaça.

Os seus braços abrem para me receber. E assim que encosto o meu rosto ao seu peito, ele volta a fechá-los, prendendo-me fortemente junto dele. Enlaço, igualmente, os meus finos braços em torno do seu robusto tronco.

Inalo sofregamente o seu cheiro, já quase não me lembrava desta fragância. A única que tem o poder de me enfraquecer fortalecendo-me.

Poucos segundos depois sinto-o vacilar. Os seus braços deixam de suster o meu corpo e eu limito-me a imitar o seu gesto. Fito os seus olhos e percebo que se sente arrependido de me ter abraçado.

Fujo do seu olhar, que me queima a alma, e por detrás do Salvador, junto à porta do refeitório, vejo o Leandro a observar-nos atentamente.

− É preciso ser-se muito idiota − cospe as palavras ao passar por nós.

Sei que estava a falar de mim, que a suposta idiota sou eu. Mas, sinceramente, as suas palavras não me afetam minimamente. Nem sequer o facto de nos poder ter visto, a mim e ao Salvador, agarrados ternamente um ao outro.

− Preciso falar contigo, Salvador − suplico quando o vejo a tentar afastar-se.

− Nós tínhamos combinado... − sussurra friamente fixado num ponto distante atrás de mim. Talvez tenha perdido a coragem de me olhar nos olhos, ou talvez esteja alguém do outro lado da sala a observar-nos.

− Eu sei o que tínhamos combinado. − Mantenho-me no mesmo local, sem me voltar para trás, com os olhos teimosamente fixos nele. – Mas as coisas mudam − acrescento, simplesmente. Este não é o local mais apropriado para ter esta conversa.

Ele parece perceber e aquiesce. Num movimento rápido e decidido, agarra-me pela mão e puxa-me dali para fora em direção ao corredor que leva ao piso inferior da nave.

Percorremos juntos os corredores que ainda me são familiares, apesar de ter sido obrigada a estar afastada deles durante tanto tempo. Sei para onde nos dirigimos, mesmo que o Salvador nada tenha dito. O barulho dos nossos passos é o único som audível que nos cerca.

AuroraOnde histórias criam vida. Descubra agora