Capítulo 4

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‒ Hoje devem ter ficado todos doentes e ido à enfermaria, para a minha amiga nem ter passado o almoço comigo ‒ diz a Analu assim que me sento em frente dela e pouso o tabuleiro com o meu jantar na mesa.

‒ Não fiques assim... Às vezes tenho muito pouco trabalho, às vezes tenho muito... Tu sabes que quando eu e a Teresa ficamos demasiado empolgadas com o trabalho, pedimos que tragam a refeição ao centro de saúde... E hoje chegaram muitos medicamentos novos do laboratório.

‒ Não te devia desculpar, mas... Como foi por motivos de força maior, eu desculpo. Como se costuma dizer por aqui: "Com a saúde não se brinca" ‒ diz a Analu tentando imitar a voz da nossa primeira professora, a professora Júlia. Foi ela que nos ensinou a ler, a escrever, a somar... Tudo através de um quadro digital, não de papel como era feito na Terra. Na verdade, a imitação da voz estridente, que marcou tanto a nossa infância, foi tão perfeita que acabamos as duas a rir.

‒ Não sabem fazer outra coisa se não rir, vocês as duas? Parecem duas crianças! ‒ Resmunga a Olívia, uma das raparigas que partilha connosco o quarto, do outro lado da mesa. ‒ Já chegou o barraco de ontem durante a reunião semanal, não?

‒ Deixa-as, Olívia! A animação é sempre bem-vinda ‒ defende-nos a sempre otimista e boa-onda Camila, também nossa companheira de quarto, ao chegar à mesa. Ela pousa o tabuleiro do meu lado e senta-se. ‒ Por falar em animação, a Maria esteve agora a falar comigo e disse-me que está animadíssima para começar amanhã o trabalho na enfermaria. Parece que vai fazer-te companhia ‒ diz, dando-me um pequeno toque com o cotovelo.

‒ A Maria escolheu a área dos cuidados de saúde? Por esta é que não estava à espera! Sempre pensei que fosse trabalhar em algum dos laboratórios...

‒ Não, Analu, tu achas é que toda a gente escolhe investigação. Principalmente, porque foi o que tu escolheste ‒ retruco.

‒ Talvez ‒ responde a Analu simplesmente, não querendo pensar muito no assunto.

Levo, finalmente, a primeira colher de comida à boca. A comida está diferente. A comida está melhor, penso, saboreando outra colherada para ter a certeza que não é uma alucinação.

Apesar de continuar com o mesmo aspeto, apesar de continuar a parecer a mesma substância semilíquida, que, por vezes, tem um aspeto esverdeado ou acastanhado ou ainda alaranjado (tendo hoje a cor verde como seu dominante), o sabor está bastante melhor. Parece que modificaram a composição química das nossas refeições. Finalmente, as nossas lamentações deram resultado.

A comida da Terra é que era boa. Como é que eu sei disso? De dez em dez anos, a comunidade faz um banquete com alimentos secos da Terra que foram armazenados. Não são muitos, mas continua a haver os suficientes para mais 7 ou 8 banquetes. Isso, sim, é que é comida.

Há muito que os nossos cientistas alimentares andam a tentar tornar o sabor das nossas refeições, produzidas apenas com substâncias químicas e substratos de plantas, e com todos os nutrientes de que precisamos para permanecer fortes e saudáveis, tão agradável como os inúmeros sabores únicos que existiam na Terra.

A minha bisavó contou-me que na Terra a alimentação era baseada em plantas e animais. Mas nós não temos animais aqui. Eu nem sequer sei o que são animais, só que respiravam, comiam, andavam, tinham emoções e comunicavam entre si. Pelas palavras da minha bisavó sempre pensei que fossem parecidos connosco. Nós também respiramos, comemos, andamos, temos emoções e comunicamos entre nós. Então porque é que os comíamos? Mas a minha bisavó respondia-me sempre que era assim que as coisas funcionavam na Terra. E eu aceitava a resposta, porque também aqui na nave há coisas para as quais não existe explicação. É assim que as coisas funcionam por aqui, é a resposta para a maioria das perguntas. Suponho que deva ser assim em todo o lado.

‒ Obrigado, Sal! ‒ Grita o Leandro fazendo a Analu tapar o ouvido esquerdo. – Parece que fizeste bem em perguntar aquilo ontem na reunião semanal.

Sigo o olhar do Leandro, tal como todas as pessoas na nossa mesa e, provavelmente, não só, e vejo o Salvador a entrar no refeitório em passo apressado. Presumo que "andar rápido" seja uma das características que vem no "pacote" de mensageiro. Talvez não venha jantar, mas sim entregar uma mensagem.

Continuo, curiosa, a olhar para ele enquanto ele avança para o lado oposto de onde me encontro. Para quem será a mensagem?

Vejo-o a continuar a avançar... a avançar... a avançar. Parece que se dirige para o fundo da sala. Será para a mesa onde se encontra o 2º Comandante e a equipa de navegação?

Rapidamente obtenho resposta à minha pergunta. O Salvador veio entregar uma mensagem ao 2º Comandante. Vejo-o a sussurrar algo ao ouvido deste e a entregar-lhe um pequeno papel branco. Deve ser algo importante.

Depois o 2º Comandante sai e o Salvador vai buscar o tabuleiro dele com a comida e senta-se numa das mesas do centro do refeitório, como se nada fosse.

Vejo-o a levar uma colher à boca e a sorrir levemente depois de engolir o conteúdo. Talvez orgulhoso, talvez apenas satisfeito. Apenas desvio o olhar quando o dele encontra o meu, fazendo-o de uma forma tão rápida e fingindo-me tão seriamente concentrada no meu prato de comida que duvido que tenha percebido que estava a olhar para ele.

Depois de ingerir mais dez colheres da nova refeição, ganho coragem e volto a olhar na direção dele, mas ele já não está a olhar para mim. Felizmente, não deve ter realmente percebido. 

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