‒ Aurora... Aurora... ‒ oiço alguém a chamar-me. ‒ Aurora, é hora de acordares ‒ protesta a Analu, abanando-me o braço com excessiva força. Agora reconheço a voz. E pela clara exaustão da voz e a força exagerada, já deve estar a tentar acordar-me há algum tempo.
‒ Já estou acordada ‒ reclamo, ainda um pouco ensonada.
Abro um pouco os olhos e assusto-me ao reparar que os seus olhos castanhos estão tão perto de mim.
‒ Não sei o que seria de ti sem mim, Aurora ‒ diz dando-me um beijo na testa.
‒ Teria que pedir ao laboratório de tecnologias para me arranjar um dispositivo qualquer para me despertar ‒ respondo-lhe ao ver os seus longos e lisos cabelos castanhos dirigirem-se para a porta do quarto.
‒ Estava a brincar ‒ confesso ao vê-la virar-se na minha direção, rendendo-me ao olhar ameaçador que me dirige.
‒ Acho bem ‒ remata ao sair do quarto.
Ainda oiço os seus risos alegres, durante algum tempo, a ecoar pelo longo corredor. Realmente não seria nada sem ela.
‒ Bom dia, Teresa ‒ cumprimento ao chegar à enfermaria do centro de cuidados de saúde.
A Teresa é a minha mentora. Todos nós temos um mentor aqui durante os primeiros dois anos de profissão. Ela é quem me ensinou tudo o que sei hoje sobre enfermagem. E como eu sou a sua única aluna (não há muita gente que escolha esta área) dedica todo o seu tempo a mim.
‒ Bom dia, meu anjo ‒ cumprimenta-me também ela ao desviar a atenção de uns papéis que tem nas mãos para mim. A informação que estava a ler antes de eu chegar deve ser importante, para ter sido colocada em papel. Mas não presto muita atenção nesse facto.
Continua a fazer-me confusão ela chamar-me de anjo. Não sei porque é que ela o faz, olhando para os seus belos e curtos caracóis loiros, para aqueles olhos cinzentos e o seu rosto pálido e jovem, sem qualquer imperfeição, mais parece ela o anjo. Não eu.
‒ Preparada para o dia de hoje?
‒ Completamente ‒ respondo convicta, vestindo a bata branca que se encontra por detrás da porta.
O trabalho na enfermaria é quase sempre o mesmo. Catalogamos medicamentos novos que vêm do laboratório da saúde. Escrevemos ou analisamos relatórios. Fornecemos medicamentos às pessoas que os vêm cá buscar. Atendemos pacientes com sintomas que nunca são muito graves (aqui, as pessoas raramente ficam doentes). Fazemos check-ups. É obrigatório que todas as pessoas da comunidade façam check-ups mensais. Não podemos arriscar que alguma doença passe despercebida, muito menos se for contagiosa. Ou ajudamos os médicos nas operações ou nas análises mais ambivalentes, onde quantas mais cabeças, melhor.
Hoje passei o dia todo a catalogar medicamentos novos. Nada de muito especial. Mas fico sempre entusiasmada quando chegam medicamentos do laboratório. São cada vez menos as doenças que não conseguimos combater. E cada vez as combatemos de forma mais eficaz. Inclusivamente, hoje chegou um medicamento novo para a asma, sem qualquer efeito secundário, e que acaba definitivamente com todos os sintomas. É que os antigos apenas impediam os sintomas de se manifestarem, e a pessoa tinha de tomar o medicamento para toda a vida. A partir de agora, não.
Vou ter de colocar um aviso na sala central, assim que sair daqui, para que todos os asmáticos existentes na comunidade venham, assim que possam, levantar o medicamento. É nestes momentos que me pergunto: "Haverá alguma profissão mais recompensadora que esta?". Não me parece.
No final do dia ainda realizei um check-up.
‒ Sempre pensei que fosses para astrofísica como a tua bisavó, o teu avô e o teu pai... ‒ diz a Sr.ª Prazeres ao abotoar o último botão da camisa. Tem 85 anos e uma saúde de ferro.
‒ Não. Sempre gostei mais de pessoas do que de estrelas... Acho que saí à minha mãe ‒ respondo-lhe espontaneamente sem parar de escrever no computador o registo do check-up de hoje. Escrevo alegremente no final do registo: "A Sr.ª Prazeres Salgado não apresenta qualquer indício de doença física ou psicológica."
‒ Mas sempre te achei muito mais parecida com a tua bisavó... ‒ diz afastando-se momentaneamente daquele lugar, daquele tempo. ‒ A mesma vivacidade, a mesma coragem, os mesmos olhos... a mesma alma bondosa. Mas não seguramente o mesmo cabelo, nisso sais realmente à tua mãe ‒ admite colocando gentilmente um dos meus caracóis ruivos, que se tinha soltado recentemente do meu cabelo apanhado, atrás da minha orelha.
‒ Devo avisar-lhe que está enganada quanto à parte da coragem.
‒ Não é o que me parece. E, Aurora... ‒ chama-me, parando em frente à porta e virando-se para mim. ‒ Ficas a saber que gosto muito mais do teu cabelo ruivo indomável do que do cabelo liso e loiro da tua bisavó.
‒ Concordo totalmente ‒ diz a minha mentora ao entrar no momento em que a Srª Prazeres sai da enfermaria. ‒ Como é que correu?
‒ Bem. Mais uma vez sem qualquer indício de doença. E como é que correu a reunião com os médicos sobre os novos medicamentos?
‒ Muito bem. Ficaram muito contentes por saber as novidades. A tua mãe especialmente, porque vai deixar de ter de operar possíveis casos de asma mais graves.
‒ Menos trabalho para a Doutora Helena ‒ brinco desligando o computador.
‒ Por falar em trabalho... vais ter uma nova colega. A Maria Nogueira fez dezasseis anos ontem, e decidiu juntar-se a nós.
‒ A sério?! Nunca falei muito com ela, mas é sempre bom saber que mais uma pessoa da comunidade se interessa por este mundo.
‒ Sim, também fiquei muito contente quando soube. É um progresso ter ganho duas alunas em menos de um ano e meio. Depois de a Raquel ter concluído os seus dois anos de aprendizado, fiquei dois anos sem ter quem ensinar.
‒ Ela começa amanhã? ‒ pergunto. Retiro a minha bata e coloco-a atrás da porta, ao lado da bata da minha mentora.
‒ Sim, começa. E tu é que a vais guiar amanhã.
‒ Eu?!
‒ Claro. Eu vou de manhã ao laboratório, por isso vais ter de ser tu a abrir a enfermaria de manhã e a encaminhar a Maria. Explica-lhe o que fazemos, mostra-lhe aqui o sítio, e mostra-lhe que o que fazemos é simplesmente... bestial! ‒ grita entusiasmada dirigindo-se para a porta da enfermaria.
‒ Deixa comigo ‒ digo, já do outro lado da porta da enfermaria, mostrando mais convicção do que a que realmente sinto.
‒ Fico completamente descansada em deixar contigo as chaves da enfermaria, por isso... ‒ faz uma pausa ao dar a última volta com as chaves, trancando totalmente a porta. ‒ Aqui estão elas ‒ diz a Teresa estendendo-me as chaves.
Pego nas chaves e coloco-as no meu bolso, sentido o peso da responsabilidade agora escondida no bolso da frente das minhas calças pretas justas e a leveza da coragem no bolso de trás, onde coloquei o papel escrito pela minha bisavó.
Despeço-me, por fim, da Teresa e dirijo-me para o refeitório, parando antes na sala central para escrever o comunicado sobre os medicamentos da asma no quadro digital preto que fica junto à porta que vai dar ao refeitório.
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Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...