Saio disparada da sala. Ouço o Salvador a gritar o meu nome, mas não abrando e, muito menos, paro.
Adentro na escuridão dos corredores do piso inferior. Tenho medo de cair ou de me perder aqui e ninguém nunca mais me encontrar. Mas o medo que tenho de ficar para trás e enfrentar o peso duro da realidade é muito maior. Só me resta fugir.
Corro. A velocidade dos meus movimentos exige do meu corpo recursos que não tenho a certeza ter disponíveis. Porém, a adrenalina invade-me a corrente sanguínea e entorpece o meu cérebro. E isso é exatamente do que preciso, neste momento.
O som de pesados passos apressados ecoa atrás de mim.
Ele está quase a alcançar-me. Foi mais rápido do que imaginei que pudesse ser a colocar a sala em ordem, tal como ela estava antes de lá entrarmos e descobrirmos a verdade mais aterradora de todo o sempre.
− Espera, Aurora! Espera!
O desespero na voz do meu namorado faz-me sentir remorsos. Ele não tem culpa. Não deveria estar a fugir dele.
Estaco.
Levo as mãos à cabeça e finco os meus dedos trémulos no emaranhado de caracóis. A força que exerço provoca-me uma dor física que não consegue superar o rebuliço de emoções que sinto dentro de mim.
Uma mão forte agarra-me o cotovelo direito e puxa-me na sua direção. O meu corpo não oferece qualquer tipo de resistência. Caio nos braços do Salvador e deixo-me ficar aninhada no peito dele.
Água salgada começa a escorrer, incontrolavelmente, pela minha face.
− Calma – o queixo do Salvador, pousado sobre a minha cabeça, vibra com a simples palavra que profere. Os seus dedos afagam-me os cabelos soltos envolta do pescoço. – Calma, eu estou aqui.
− Ele é pior do que imaginávamos, Salvador. – Soluço. Uso os meus braços para me soltar do seu abraço apertado. – Fez-me acreditar que tinha sido eu a culpada da morte do Sr. Nicolau e afinal... Afinal nada teve a ver com a porcaria dos medicamentos. – Passo a mão de forma agressiva pelas bochechas para retirar parte da humidade que os meus olhos derramam. Afasto as lágrimas do meu rosto como gostaria de afastar o 1º comandante da minha vida, da vida da comunidade. − Ele é um assassino, um verdadeiro monstro!
− Eu sei. – A mão do meu namorado acaricia a minha face molhada. − Eu sei. Eu estou tão magoado e enraivecido quanto tu estás.
− Ele matou a minha bisavó, Salvador − a raiva e a tristeza de que ele fala misturam-se na minha voz. Mostram-se completamente dissociáveis.
O 1º comandante é o culpado de todo o sofrimento por que já passei na vida: ter de ficar afastada do Salvador, ter de negar a mim própria os meus sentimentos por ele; ser privada da companhia da minha bisavó até ao resto dos meus dias; e ter tido de passar pela tortura agoniante de achar que matei um inocente, alguém que nunca me fez mal, que nunca fez mal a viva-alma. Ele é o culpado!
Um ódio crescente começa a ganhar espaço dentro de mim. A minha expressão endurece. Os meus olhos revelam uma obscura determinação.
− Ele vai ter de pagar.
− Não, Aurora. Nós não podemos fazer nada. Existem algumas coisas contra as quais não podemos lutar. E esta é uma delas. Ele é demasiado perigoso.
− Enganas-te. Esta é exatamente uma das coisas contra a qual podemos e devemos lutar. Se continuarmos de braços cruzados, ele vai continuar a fazer estas monstruosidades.
− Então o que sugeres? Que revelemos toda a verdade à comunidade inteira, amanhã, na reunião semanal? – questiona ironicamente.
− Não. – Um sorriso desenha-se no meu rosto por entre a escuridão, mas o Salvador está próximo o suficiente para o ver. − Não "nós". Não "toda a verdade". Eu tenho um plano.
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Aurora
Science Fiction"Eu queria poder dizer-te que serás amada, muito bem cuidada e protegida, mas não te posso mentir. Este mundo onde vivemos já está cheio de realidades ocultas e a verdade parece-me, cada vez mais, um bem demasiado precioso para não o valorizarmos. ...