Capítulo 16 - Uma possível fuga

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Para todos aqueles que apoiaram e incentivaram a minha leitura e amor por esse vasto e incrível universo dos livros    







Ele esperou cerca de meia hora depois de que a enfermeira carrancuda que lhe entregara uma muda de roupa fechou a porta atrás de si. Ignorou a pontada de dor em suas costas quando se sentou na maca e começou a se trocar. A escuridão não o ajudava muito, mas não poderia ligar a luz nem que quisesse, pois o toque de recolher se estendia ao hospital, de forma que a energia era desligada automaticamente, com exceção do subsolo, aonde os dependentes de máquinas ficavam.

Já trocado, Wander se pôs de pé e alongou-se, evitando mover com o tronco. Observou aquela janela suja que dava para a cidade e imaginou se aquilo realmente daria certo... Tinha que dar! Era a única chance de ele e Helena fugirem daquele inferno. A penumbra aumentou conforme a lua minguante era tapada por uma nuvem, e Wander julgou aquilo como um sinal do universo.

Pegou o seu lençol e começou a fazer uma trança. Amarrou ao cobertor, depois às suas roupas sujas. Mas aquilo parecia curto, ainda... Deveria o alongar o máximo possível. Correu os olhos pelo quarto, mas tudo oque viu era o saco de lixo, cheio. Esvaziou a lixeira e amarrou o saco. Mais alguma coisa, mas o quê? Por fim, retirou a camiseta e a amarrou na ponta; depois era só pegá-la de volta.

Observou o lixo despejado no chão, vendo se algo teria utilidade. Sua calça tinha bolsos. Seus olhos se fixaram nas seringas usadas e descartadas, algumas ainda com algum remédio. Pegou três e guardou, depois, retirou o êmbolo de uma quarta e misturou todos os químicos que sobraram nas outras seringas. Aquilo devia ser usado como algum tipo de veneno, e as outras três vazias, como dardos.

Por fim, arrastou a desconfortável cama até abaixo da janela e amarrou a ponta de lençol. Pegou a lixeira, agora vazia, e a usou como um martelo. Bateu na janela até que a mesma estivesse em frangalhos. Deveria ir agora, logo os médicos iriam o checar devido ao barulho. Pegou um pedaço de vidro e guardou com as seringas, seria sua adaga. Pegou a ponta de camiseta e jogou pela abertura da janela.

Se segurou na corda improvisada e começou a descer, aos poucos, com um vento gélido batendo em suas costas. A lua, enfim, reapareceu. Ouviu a porta de seu quarto se abrindo, olhou para cima, e percebeu três funcionários, se espremendo, curiosos. Ele já estava na ponta da corda, mas ainda faltavam dois andares para descer. Como faria isso? Foi aí que percebeu que a trança se alongava aos poucos, o levando em segurança para o chão.

Rasg!

O saco plástico de lixo que usara estava se expandindo devido ao peso e já começava a se rasgar. Silenciosamente, uma fenda se abriu lá no meio e aumentou até separar o saco em duas partes. Um ventou cortante atingiu Wander enquanto ele caía, num baque abrupto, contra a calçada. Suas costas doíam, muito mesmo.

O garoto ficaria ali, e aproveitaria para tentar se recuperar da queda durante os minutos que lhe restavam até que os médicos descessem. Mas, ao invés de ir atrás de Wander, eles soaram um alarme. Com a aguda onda sonora, Wander sentiu seus ouvidos o abandonarem. Resgatou a força do fundo de seu ser e se pôs de pé. Então começou a correr em direção ao prédio de Helena.

Conforme virava as esquinas, o barulho não se esvaía. O alarme estava sendo tocado por todos os autofalantes da cidade. Suas costas tremiam de frio sem a proteção de sua camiseta, que havia sido deixada para trás, pendurada, balançando na corda improvisada.

Naquela altura do campeonato, Helena já deveria ter ouvido o alarme tocando insistentemente. Provavelmente estava esperando que ele aparecesse para os dois fugirem juntos. Nesse momento, o pavor invadiu a Wander. Ele se lembrara de algo. Ao toque de recolher, a porta e as janelas do apartamento se trancavam automaticamente, então como ela iria conseguir sair?

"Droga, eu penso nisso depois...", e continuou o caminho. Eles pensariam em alguma coisa na hora. Marah penetrou em sua mente, será que ela estaria bem? E por onde andaria? Aonde os rebeldes estavam escondidos?

Outra vez, a escuridão envolveu a cidade. Wander teve de se guiar pelo instinto enquanto isso, pois não havia nenhuma outra fonte de luz para lhe mostrar o caminho. Aos tropeços, acelerou, seguindo sempre em frente, em direção à Helena. Mesmo no frio da noite, Wander suava sem parar.

Não demorou tanto para que a luz da lua se fizesse presente novamente. Uma brisa tocou a pele nua do tronco dele, mas havia algo lhe esquentando... Como um cobertor líquido quente, escorrendo por suas costas. Wander tocou suas feridas, que doíam desde o baque na calçada, e examinou a ponta dos dedos. Sangue quente, empalidecido à luz do luar. Na verdade, no fundo de sua mente, ele já sabia daquilo, mas preferiu ter certeza.

As cicatrizes que mal haviam começado a se curar agora fora abertas e jorravam sangue a torto e a direito. A fraqueza começou a tomar conta das pernas do fugitivo-mirim, mas o mesmo não se deu por vencido e continuou sem desacelerar. Se continuasse assim, teria o risco de uma hemorragia muito grave, entretanto, se parasse, algo pior o esperaria. Tinha certeza.

Pelo menos agora ele se aproximava do prédio onde Helena estava alojada. Um sorriso foi esboçado quando ele virou a rua, a poucos metros de seu destino. Infelizmente, ele não durou por mais de um segundo. Na mesma rua, vindo em sua direção, estava um exército armado até os dentes. "Não posso enfrenta-los", lamentou se mentalmente.

Tentou voltar por onde viera, mas a rua também estava tomada por soldados, na mesma situação do outro exército. Apenas a rua a sua esquerda ainda estava livre. Lágrimas rolaram sobre as bochechas de Wander. "Me desculpe, Helena, a gente não pode fugir. Pelo menos, não você...".

Todas as frustrações que Wander já tivera na vida voltaram, claras e doloridas, na mente dele. Estava impotente de novo. Sem poder ajudar à sua amiga. O garoto poderia desabar frente ao estado físico e mental a qualquer momento, mas não desistiu. Tomou a única rota de fuga possível naquele momento e se armou com o caco de vidro e uma seringa fazia. Não iria desistir.

Alma de Golem (completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora