Para todos aqueles que apoiaram e incentivaram a minha leitura e amor por esse vasto e incrível universo dos livros
O Sol entrava através dos pequenos furos presentes na tampa de bueiro. Os pássaros cantavam ao longe, por cima da laje grossa e resistente de concreto que separava os esgotos da superfície. Os sons de passos não rítmicos invadiam fracamente o subsolo e o cheiro flutuava pelo ar frio e abafado - se é que isso é possível. Vozes fracas discutiam coisas conforme passavam pelas proximidades.
Wander se remexeu por baixo do cobertor esfiapado e inútil, cuja função era de proteger a ele e seu pai do enregelante frio que invadia o espaço subterrâneo. Ele se encolheu o máximo que pode, ainda dormindo, de dentes trincados e testa franzida. O frio concreto lhe cortava o tronco, principalmente suas costas que haviam começado a recicatrizar na noite anterior.
O garoto se mexeu um pouco mais do seu lado do edredom e apertou os olhos, acordando para o dia que lhe esperava pela frente. Semi-cerrou os olhos e deu uma olhada em volta, pelo abrigo do seu pai e agora seu.
"Não por muito tempo...", pensou Wander consigo mesmo. Ao lado da mochila antes estufada de suprimentos, pegou mais uma pílula para suas costas, as quais ganhara de um garoto durante sua fuga. Enquanto isso, pôs-se a pensar em Marah. Como será que ela estaria? Será que iriam se reencontrar na tal fazenda? Ela estaria sã e salva? Sentia a sua falta por acaso? Ou não? Ele estremeceu apenas com a possibilidade. "Logo, estaremos juntos. E uma forma ou de outra."
Por mais que, do lado de fora o Sol já houvesse nascido há tempos, Neil e Wander ainda se encontravam numa quase total penumbra.
Wander saiu de baixo do cobertor, se levantou e alongou-se. Depois, se ajoelhou e sacudiu ao seu pai levemente, chamando-o baixinho. O adulto contraiu o corpo e abriu seus olhos devagar. Por algum motivo, ao perceber quem o havia acordado - seu filho -, arregalou os olhos e enrijeceu.
- Wander, é você? Eu achei que fosse um sonho.
- Obviamente sou eu, pai. Já se esqueceu de ontem?
- Não, é que... Tudo parece embaçado, não era eu, sabe? Fico feliz em saber que está bem.
- Do que está falando, pai?
- Não tenho certeza se Ele lhe contou, mas uma personalidade, naturalmente, não divide suas lembranças neurológicas-sentimentais com seu confrade de corpo residente.
- Oi? Pai, cê tá bem? Que deu em você para, do nada, falar com palavras difíceis?
- Me desculpe pela idiossincrasia. Eu disse que duas personalidades de alguém bipolar não dividem memórias de reações a estímulos psicológicos. Logo, tudo que o outro fez durante o domínio do corpo se torna um borrão.
- Ah, mas você já me explicou isso.
- Então já devia ter notado que não está discutindo com a mesma personalidade vacilante e covarde, e sim com alguém culto e racional. Logo, está falando com diferentes capacidades psicológicas e distintos corpos etéreos. Prazer, sou a segunda personalidade, Neil. Tecnicamente o Outro também é nomeado de Neil. Alma de ar.
- Você se refere a você mesmo como se fosse duas pessoas. - comentou Wander.
- Si. Você se refere a SI mesmo, e não "você mesmo". Bem vindo à mente de alguém bipolar. Nos sentimos assim. Oh, céus, estou um trapo. Você está um lixo. Nós dois parecemos até um aterro sanitário!
- Eu já estive pior...
- Sim, eu fiquei sabendo. - o homem parou de falar de repente e fitou a mochila que, no dia anterior, estava abarrotada de alimentos. Por minutos, um silêncio se perdurou ante ambos. Logo, Neil voltou a falar: - Vejo que temos outras preocupações. Mais hora, menos hora, estaremos sem comida e subnutridos. Aquele Outro é mesmo um obtuso! Come dois terços da comida e nem para subir e furtar mais uma quantia substancial... Sinto muito por ele ter feito você passar por isso, meu caro.
Wander não disse nada, mas estava muito nervoso frente a essa nova face de seu pai. Sem contar que a frequente crítica a si mesmo se referindo ao Outro.
- Creio que é uma evidencia de que deverei subir até a superfície, buscar comida. Você deve ficar aqui, eu volto logo.
- Não, não! Espere. Ontem eu e você... Eu e você... - era esquisito se referir ao próprio pai como ele - Eu e Ele estávamos discutindo e ele quer sair da cidade, encontrar os rebeldes.
- Ora, mas isso é ridículo! Não sabemos onde eles se alojaram. Francamente, confrade.
- Você sabe sim!... Quer dizer, Ele sabe. Achei que poderíamos buscar o mapa de um ponto de ônibus e nos mover pelos esgotos.
Neil o examinou de olhos brilhantes e inquisitivos.
- Temo não saber de nada desse plano. Nós dois não podemos nos comunicar. Poderia haver de me explicar?
Os minutos que se sucederam foram passando conforme Wander explicava a seu pai o plano. Subir até um ponto de ônibus e pegar o mapa fixado na parede. Descer e se guiar através dos túneis de esgoto até o limite da parte urbana da cidade. Subir de novo e continuar daí. Chegar à fazenda e se hospedar com os rebeldes.
- Interessante... Mas o único que sabe a localização é Ele. Teria que ir embora pra ele tomar posse, mas é muito exaltivamente difícil fazer isso. Embora eu possa tentar. Quem sabe se eu dormir? Sabe, confrade nós dois temos oscilado muito.
- Sim, sim. Tente fazer isso!
- Porém ainda existe um obstáculo. Precisamos de suprimentos para a viagem e, se eu me transformar de volta, me tornarei um covarde de marca maior.
- Eu subo. Você fique aqui e tente dormir.
- Mas é muito complicado subir, e lá em cima será muito perigoso.
- Não tem problema. Estive por riscos maiores - disse Wander e sorriu, pois era verdade
Neil se calou por um instante.
- Se assim deseja, que assim seja. Que sua alma ilumine o caminho.
Wander assentiu com a cabeça e se virou, mas não partiu ainda. Relembrou as rezas que aprendera na infância para fortalecer seu Golem. Era natural quando se crescia que se deixasse de acreditar que aquilo surtia efeito. Sua mente viajou para a época em que seu golem ainda era um boneco de madeira do tamanho de um abacaxi. Por mais que ambos nos esgotos, pai e filho, soubessem que aquilo não funcionava, eles precisariam do máximo de sorte possível.
Que sua alma ilumine o caminho para Golens de fogo.
Que sua coragem seja firme como uma rocha para Golens de terra.
Que sua mente continue límpida como a água para Golens de água.
- Que a brisa do destino sopre a seu favor. - disse Wander.
- Amém. - disseram ambos. Então Wander partiu rumo à superfície.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Alma de Golem (completo)
Science FictionUm garoto comum numa distopia, o que poderia dar errado? Wander, um adolescente dezesseis anos, está prestes a ter sua vida virada de cabeça para baixo graças a um tour de colégio pela cadeia local. Nesse mundo onde ele vive, as almas são encarnada...