III
AMÉLIA
Kat estava observando pela janela qualquer movimentação do lado de fora. O dia estava claro, a primavera tinha acabado de começar e a visita anual dos amigos de Amélia tinha chegado novamente. Eles tinham marcado no clube de mini golfe da cidade, era mais para que as mulheres rissem das tentativas dos homens de jogar enquanto conversavam sobre suas experiências como avós, algumas mais recentes que outras. Katarina já estava acostumada com a avó contando todas as suas histórias por aí, no entanto, ainda ficava com vergonha e completamente vermelha, mesmo sendo negra e sendo difícil notar a vermelhidão por detrás de sua melanina.
Com o passar dos anos a jovem se afeiçoou a todos, gostava das tardes de conversas com eles, se sentia bem, em paz, obtinha aprendizado através de risadas e café. Ela fechou a cortina e saiu ao encontro da sua avó na sala, ela sabia que a avó fica sempre muito impaciente com o desejo de reencontrar logo os velhos (bastante velhos) amigos, porém, quando chegou a encontrou serena, sem nem um sinal de agitação.
— Katarina, querida. — Amélia tinha uma voz doce, gentil. — vamos treinar um pouco?
— Mas hoje não é o nosso encontro anual? — responde ela com um sorriso enorme no rosto.
— Sim, mas só vamos nos encontrar com eles a tarde, e podemos aproveitar que seus pais não estão em casa para bem, começarmos os trabalhos. — lançou lhe então um olhar cheio de significados, o que fez com que Katarina não discutisse mais, gostava desses momentos ao lado da avó, ela aprendia muitas coisas, era literalmente algo mágico.
Minutos mais tarde elas se encontravam no quarto da jovem com vários incensos acesos, e com Amélia murmurando algumas coisas que não era entendível.
— Senta, querida, olha, você já sabe alguns feitiços, e eu sei que você gosta disso.
— Vai me ensinar um feitiço novo, vovó? — ela a interrompe empolgada.
— Não, não, vou te ensinar a controlar eles em diferentes situações.
— Como assim? — agora ela estava ainda mais curiosa.
— Bem, você precisa saber manter seus dons guardados, e expô-los no momento certo e principalmente, na intensidade correta. Até por que ninguém conhece esse dom da nossa família, e muitos podem não entender.
— Nem mesmo a tia Joana ou Vagner? A tia Soraia e o tio Carlos, o que me diz? Eles são seus melhores amigos.
Ela sorriu levemente.
— Eles sabem, claro que sabem, Kat, mas… você precisa entender que nem todos tem a mente aberta como eles têm.
Kat sentou mais ereta, tomada pela curiosidade. Sua avó sempre havia lhe ensinado a ser discreta e não tentar nada com qualquer visita que estivesse de passagem pela casa, mas com os amigos da avó ela sempre se sentira mais confortável, embora nunca tenha feito nada com medo de descumprir alguma regra não dita entre a avó e ela.
— Eles também têm poderes? — indaga a garota virando-se para deixar o celular no criado mudo.
Amélia estremeceu, Katarina não percebeu.
— Não, querida. Alguns são especiais, muito, mas não a ponto de terem dons como nós temos, por exemplo, seu pai, ele é extremamente especial para mim e para você, e às vezes, parece que ele sabe exatamente o que falar, mas não, ele não tem os dom que você tem, o que nós temos.
— Por quê não, vó? — Kat perguntou. — A senhora disse que mamãe também não era como eu, então por quê sou assim?
— Querida… — Amélia começou.
Estava achando complicado fazer Katarina compreender o que estava tentando lhe dizer, e ela pensou por um instante que tinha escolhido talvez o tempo errado para essa conversa. Pena não possuir tanto tempo assim para ter toda a paciência que algo assim mereceria.
Ela engoliu em seco discretamente, um nó em sua garganta que dizia como um sintoma de “esta é a hora errada”, mas quanto tempo ela tinha?
— Na nossa família, alguns poucos são escolhidos com o dom. — continuou. — Em realidade todos possuem, mas na maior parte do tempo é apenas uma sensibilidade, nada muito forte, eles crescem com ela e nem sequer percebem que outras pessoas talvez não possuam a mesma… sutileza.
— Então porque eu consigo fazer essas coisas como a senhora, mas meus pais não?
Amélia sorriu. A curiosidade da sua neta não era sanada até ter todas as perguntas devidamente respondidas.
— Isso acontece com menos frequência, querida. Veja só, o que acontece é que de geração em geração alguém nasce com mais do que uma sensibilidade, e essa pessoa acaba tendo que ser devidamente treinada para conhecer melhor suas qualidades.
— Eu sou uma delas?
— Sim, e é justamente por isso que precisa controlá-los, Katarina. Existem pessoas ruins, essa ideia de mal e bem nunca vai ser mentira, tudo se encontra em yin e yang o bem se mistura com o mal e pode ser corrompido se tornando trevas, e o mal pode se misturar com o bem para se tornar luz, e você — ela parou, olhou profundamente a jovem com um sorriso tênue nos lábios. — você, minha doce Kat, é luz, não pode se deixar levar pelo lado negro.
Ela segura o rosto da neta com às duas mãos, olhando-a como se quisesse guardá-la em um pote e protegê-la para sempre, no entanto, uma tristeza no fundo, de seu olhar mostrava que não poderia, somente ajudá-la nesse momento. Nesse tão breve momento.
— Certo, como vou ser luz? Eu sou só eu, a Katarina. Como vou esconder meus poderes, vó?
— Você não vai de fato escondê-los, vai controlá-los, eles sempre vão está aí, e você irá senti-los mais forte quando estiver ficando mais velha, e na medida que for dominando novos feitiços. Vai sentir a natureza te chamando, e vão ter momentos que você precisará atender a esse chamado, necessitará de um momento só seu e dela, juntas, entrando em harmonia. Isso deixa você forte em meio a situações caóticas, quando tiver um torrencial de informações e sentimentos é na natureza que você vai encontrar as respostas para o seu interior e para os problemas ao seu redor.
Katarina tinha só quinze anos, mas sua avó lhe ensinara muitas coisas desde que era pequenina, entendera o que Amélia disse no mesmo instante, só não conseguia explicar o que ela dizia sobre situações caóticas. Ela de certa forma, no treinamento que se sucedeu, nunca vira a avó exigir tanto dela, Amélia gritava algumas vezes, o que tirava completamente a atenção da jovem, passaram mais algumas horas nesse estado até que a senhora recebesse uma ligação e elas pararam.
— Certo, penso que podemos parar, eles já estão nos esperando no campo de golfe.
E elas foram. O campo de golfe da cidade era o lugar favorito de Kat na infância para se encontrar com seus tios, como elas os chamavam desde que se lembrava. Estavam todos lá, a mulheres com chapéis grandes e os homens com calça caqui, e Kat sentiu uma nostalgia enorme ao vê-los todos ali com suas cestas de piquenique e cadeiras de praia no meio do campo vasto e verde de golfe.
Amélia riu.
— Quando sua tia Joana vai parar de carregar cadeiras de praia para todos os cantos?
Kat não teve como não rir. Sua tia Joana morava no Ceará desde que resolvera casar pela terceira vez. Infelizmente ela perdeu o marido três anos depois, em um capotamento, mas eles adoravam ir à praia e ela nunca mais deixou de carregar uma bolsa de praia, protetor solar, maiô e uma cadeira desmontável em qualquer lugar que fosse. Mesmo que esse lugar fosse Alcântara, mesmo que viesse no inverno de 19ºC.
Quando o grupo percebeu que ambas se aproximavam fizeram um círculo ao redor, como uma meia-lua perfeitamente sincronizada e estenderam os braços que se fecharam em um abraço coletivo. Isso era tão natural para Kat, tão familiar. Para algumas pessoas uma tarde se divertindo com os amigos velhos da sua avó era um tédio, mas para ela era como estar com a família completa.
— Olha só você! — Exclamou sua tia Joana. Ela sempre fora assim expansiva. Você conseguiria ouvir seu riso a muitos quilômetros de distância, estaria em todas as fotos da reunião e seria a única a ficar dançando mesmo depois que todos reclamavam de dor nas pernas. — Você é uma linda adolescente de quinze anos.
— Não seja caduca, Joana. Nossa Kat ainda tem só quatorze anos. - Disse tio Carlos me dando um abraço apertado.
— Engano seu, seu velho maluco. — Defendeu tia Joana. — Nos confirme, querida, só para deixá-lo envergonhado.
Kat sorria com um brilho nos olhos, ela sempre se divertiu com as brigas entre os dois.
— Sinto muito, tio C… — disse encolhendo os ombros. — Eu tenho quinze.
Tia Joana deu um grito e soltou uma gargalhada.
— Vê só? Eu estou sempre certa, não fique teimando comigo. — Virou e lhe deu um beijo na bochecha. — Trouxemos dezenas de presentes para você.
Amélia se aproximou. Ela estava tão sorridente que Katarina só conseguia pensar o quão bem esses encontros anuais faziam para ela.
— Sem açúcar eu espero. Tudo o que você trás do nordeste tem pelo menos cem quilos de açúcar, ou é feito cem por cento de açúcar. Da última vez tive que levar Katarina ao dentista por causa da cárie.
E assim começou, os risos, os jogos de poker (sim, eles jogavam poker, nada de jogos básicos, nem truco) e tia Soraia contava histórias de quando trabalhou em uma casa de jogos em São Paulo, sempre a mesma história, mas todos riam por que sempre tinha um final absurdo. Claro que tia J tinha trago dezenas de doces para Katarina, e depois que a avó se distraiu com uma partida quase perdida ela aproveitou para comer bastante.
Mais tarde ambas estavam no carro, rindo de algo que Joana havia feito com a neta no mês anterior. As ruas estavam tranquilas, mas Katarina estava com uma sensação estranha, como se estivesse com medo da viagem, o que era insano, sua avó Amélia dirigia muito melhor que seus pais. Duas ruas depois veio a resposta para o temor da garota, duas motos viera em direção ao veículo delas, um fusca azul. Tudo a seguir foi muito confuso, buzina, o som de vidro se estilhaçando. Kat não sabia o que estava acontecendo, mas algo a deixou ainda mais confusa: uma das pessoas que as acertou se levantou do chão e saiu caminhado como se nada tivesse acontecido, ou ao menos foi isso que ela achou ter visto, porque logo em seguida ela lembrava-se de uma dor fortíssima e de sentir algo quente escorrer por seu braço, muito quente. Então ela já não se lembrava de nada.
Mais tarde ela acordou no hospital com muitos curativos e a notícia de que sua avó havia falecido. Kat não acreditou de início, e quando saiu do hospital encontrou todo o grupo de amigos de sua avó, sentados em sua sala de estar. Ela sorriu, mas nenhum deles lhe retribuiu o sorriso, nem mesmo tia J, todos olhavam com um semblante pesaroso e então ela soube que era real.
Fora a notícia mais triste e a fase mais difícil que Kat um dia teve de suportar. Ela jamais esqueceria seus tios, amigos da sua avó, reunidos na pequena sala da casa de Amélia. Kat ficou lhes observando à distância, em um dia normal eles estariam bebendo vinho e rindo. Teria muita comida e Kat estaria em seu quarto aproveitando os doces e abrindo outros presentes, seus pais estariam com um semblante impaciente por considerar o grupo de amigos da avó de Kat excêntricos, mas até mesmo eles se divertiam. Seu pai estaria sendo arrastado por tia Joana em uma dança incansável e sua mãe estaria ganhando alto no jogo de poker.
Infelizmente era um dia incomum. Todos estavam lá, menos uma pessoa, a mais importante e razão pela qual isso acontecia todos os anos, e não havia musica e nem barulho de fichas e naquele dia Kat soube que não voltaria a se aproximar do seu dom nunca mais, que nada voltaria a ser de novo como fora um dia, e ela estava certa.
No próximo ano ela ficara ansiosa em como seria a próxima visita dos tios depois da ausência de sua avó, mas eles não vieram. Depois de um tempo até mesmo o contato pareceu ficar escasso, e as reuniões animadas anuais que Kat pulava de alegria nunca mais foram vistas.
Kat poderia ao menos entender. Era difícil até mesmo para ela imaginar o grupo reunido sem sua avó, ela sentia falta dela demais, de uma forma que ela nunca poderia esquecer, porque ela sabia que algo de muito errado iria acontecer naquele dia e não impedira sua avó. Agora ela se fora.__________________
Oii docinhos
Desaparecemos um pouquinho em nome dos estudos e das provas, foi uma pausa longa em penumbra mas permanecemos na ativa.
Esse bônus muito especial de uma personagem bastante especial já estava pronto para postagem desde o mês passado, mas por conta dos já citados estudos nos atrasamos.Queremos comemorar mais esses cinco capítulos (seis com o bônus) que conseguimos concluir. Estamos com vocês torcendo pela próxima.
Deixem suas considerações nos comentários, não esqueçam de votar.
Ps: já estamos de volta, então esperem capítulo semana que vem. ;)
Grande beijo
#GeLaLu
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Penumbra
FantasyFomos caçados, mutilados e mortos. Os poucos de nós que sobreviveram ao massacre fugiram e se esconderam, uns continuaram em sua cidade recusando-se a fugir, outros simplesmente emigraram. Não mantivemos contato por muito tempo, tivemos uns cochicho...