Capítulo 4 - Cartas de Ninguém

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São 14h30 da tarde, e eu decido que preciso de algo doce pra alimentar minhas ideias. Você já se sentiu como se sua mente fervilhasse com tantos planos e sonhos, que você mal conseguia decidir o que ia tentar fazer primeiro? Minha vida andava tão fora de ordem, que quando eu resolvi concertar tudo, eu me senti dançando na chuva. Uma tempestade de coisas a resolver e eu me valendo da brainstorm, para tentar provocar uma mudança.

– Bowie? – chamo – Quer ir lá fora?

Quase automaticamente, ele vem pra perto de mim com o rabo balançando freneticamente. Eu prendo a guia em sua coleira e pegamos o elevador juntos. Ele parece feliz de novo. Na verdade, acho que é porque ele gosta de ir passear e não porque o humor dele é mutável como o meu.

Vamos até a padaria, a duas quadras de casa. Eu não tenho muito dinheiro fora o que meu pai me dá. Hely costuma pedir dinheiro a ele, o que eu costumo ter vergonha de fazer, porque eu acho que eu devia pagar minhas próprias contas, com meu próprio dinheiro, aos 21 anos.

Mas infelizmente, eu moro no Brasil e conseguir um emprego é quase tão difícil quanto ganhar na loteria.

É por isso que, apesar de parecer que isso é algo que eu sempre estou fazendo, na verdade ir até a padaria comprar um doce depois do almoço é um pequeno luxo que eu só me permito porque estou animada demais com meu plano. Compro um pedaço de cheasecake pra mim, de mamão e kiwi. Gosto dos sabores excêntricos. Pra meu pai e Hely, eu levo um pedaço de bolo de chocolate pra que eles comam mais tarde.

Estou quase tão alegre quanto Bowie andando na rua.

Faz tempo que eu não me empolgo com uma ideia assim, e eu consigo simplesmente me ver chegar em casa, servir o doce num prato, e comê-lo no balcão da cozinha enquanto rabisco meus planos na minha agenda antiga. Eu fazia isso sempre, quando era mais nova e tinha lição de casa. Geralmente eu estava beliscando alguma coisa maluca que tio Peter tinha preparado enquanto me esforçava pra entender a ligação complexa dos números nas lições de matemática ou química. Ele adorava cozinhar e fazer o dever de casa assim era mais fácil. Sinto falta dele em casa com a gente.

– Oi, Enna! – alguém diz. Eu me viro pra trás e vejo a dona dos tênis amarelos do outro dia.

Parece que depois que eu tomei consciência de sua existência ela aparece em todo lugar. Foi a mesma coisa que aconteceu quando eu descobri quem era Farrah Fawcett, a atriz dos anos 70 que meu pai idolatrava. As fotos e filmes dela pareciam estar em todo o lugar e até os livros que eu li naquela semana tinham referências a ela – o que era assustador.

Mas é sempre assim.

Quando você se dá conta da existência de algo ou alguém, você começa a reparar por ironia do destino, que isso sempre esteve lá, e que por que você finalmente se deu conta disso, agora isso se tornará ainda mais frequente em sua vida.

Essa menina era só mais uma dessas coisas.

– E aí? – falei com um sorrisinho.

Ela sorri e diz oi para o cachorro, o que faz Bowie se esconder entre minhas pernas.

– Ele não gosta muito de mim – Ela diz decepcionada. Tento me esforçar pra lembrar seu nome, mas mal me lembro dela na escola. Sorrio ao pensar que afinal não era tão injusto que ela me chamasse de "Irmã da Hely", se eu nem sei quem ela é.

– Ele só está com medo – tento ser simpática. Bowie não gosta muito de interagir com gente nova. Igualzinho a dona.

Meu garoto.

Hely & EnnaOnde histórias criam vida. Descubra agora