Capítulo 7 - Rosa, Azul, Formatura e Harper Lee

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Eu conecto os fones de ouvido no meu celular e coloco minha playlist de músicas que tocam em 3D. Eu adoro a sensação que dá da música passando de um lado pro outro. Porque de certa maneira ela parece estar, sei lá, entrando dentro da gente. Quando os dois fones tocam ao mesmo tempo, parece que a música sou eu. É disso que eu gosto.

Sempre gostei muito de música e acho que nada torna um momento mais sagrado ou especial do que quando a canção certa toca ao fundo. Então pra passar a tarde lendo essas cartas, eu quero também algo com profundidade e deixo minhas músicas favoritas tocando enquanto abro o envelope nº 2.

"18 de dezembro de 2016"

Enna,

Hoje peguei as fotos da nossa formatura ao acaso, enquanto procurava algo no fundo do guarda-roupas. Tem algumas fotos suas lá, no seu vestido azul e com o cabelo preso de um jeito encantador que deixava ver seu rosto. Eu te olhei a noite toda, porque sabia que ia ser uma das últimas vezes que eu te veria na vida.

É claro, que isso é só outra das cartas que eu te escrevo, sem nunca enviar. Você nem sabe, mas sempre te escrevo quando estou triste. Nem sei mais quem você é, tem um bom tempo que não te vejo. É claro que as coisas que eu senti dois anos atrás, não são as mesmas. Agora te escrevo mais por achar que (pelo menos a garota que eu conheci), se pudesse ler essas cartas, leria e talvez até me desse uma resposta. Ou talvez isso fosse a versão de você, que eu inventei na minha cabeça.

Ainda assim, eu gosto de você, Enna. É loucura porque eu não disse isso quando podia. É loucura porque te vi apenas algumas vezes desde que nos formamos, e em nenhuma delas você se quer notou minha presença.

É loucura também, porque eu estive tentando coisas com outras pessoas, mas de repente você aparecia onipresente em um post nas redes sociais, ou em um comentário numa roda de amigos que falava do ensino médio; e toda vez que você reaparece assim – igual hoje quando vi as fotos da formatura – meu coração parece que se aperta. Sinto saudades de alguém que eu nunca tive. Me arrependo de não ter te dito tudo quando tive a chance. Me sinto o cara mais idiota do planeta.

Você nem mora assim tão longe. Eu devia criar coragem e ir te procurar. Mandar uma mensagem com uma desculpa esfarrapada. Eu não sei. Tenho medo disso, e de tudo dar errado.

"Coragem é quando você sabe que está derrotado antes mesmo de começar, mas começa assim mesmo, e vai até o fim, apesar de tudo."

Talvez eu não seja corajoso, Enna."

"Bom, em algum momento dois anos depois dessa carta ter sido escrita, suas cartas chegaram até mim." Penso. "Isso significa que você tem alguma coragem".

E seja lá quem for, gosta de literatura. Talvez mais especificamente de Harper Lee, ou de seu livro. Eu gosto de ler tanto quanto gosto de escutar música e "O Sol é Para Todos" é um dos livros que mais me marcou na vida.

Eu sei lá porque, mas sempre gostei do Boo Radley.

Ele é o personagem misterioso, entorno do qual giram várias histórias, e de quem as crianças do livro tem medo. Ele vive recluso em casa, e eu praticamente vivo reclusa em casa. Eu sou uma versão feminina do Boo Radley.

Leio a carta mais uma vez e me pergunto por quanto tempo esse cara foi apaixonado por mim. Eu não tenho certeza se é paixão, amor platônico ou uma obsessão estranha pela garota errada. Mas é legal pensar que não só Hely Wilson é capaz de despertar paixões nessa casa.

Eu acho que consigo mais do que imagino afinal.

Bowie me segue até a porta do quarto de Hely, ela está com a porta aberta, mexendo nos moveis e com música alta. Ela está organizando as fotos em seu mural, tirando as com Henry e deixando as que está com as amigas. Tem uma de nós duas nas mãos dela mas eu não sei dizer se ela está tirando do mural ou colocando.

– O que foi Enna? – ela pergunta, olhando pra porta.

– Eu preciso de algo que está no seu quarto – digo.

Hely me olha de um jeito quase engraçado.

– Absorvente?

– Não, o nosso álbum de formatura – respondi.

– Pra que você quer isso? – ela perguntou, indo colocar nossa foto no centro do mural. Isso me deu algum alivio, confesso.

– Só quero ver – dou de ombros. Ela arrasta uma cadeira para frente do guarda-roupas, sobe e pega o álbum pra mim. Nunca gostei dessas fotos, por isso elas ficam no quarto de Hely. Ela está linda em todas as fotos. O vestido rosa dela prece pertencer a uma princesa moderna. O meu vestido azul parece meio errado. Talvez, se eu tivesse um corpo diferente ele encaixasse melhor.

Hely desce da cadeira e vem até mim com uma risada.

– Está com saudade do Ensino Médio?

Bowie faz um grunhido, como se dissesse que ela é idiota. Eu o acaricio.

– Eu odiava a escola – falo rindo. Ela bem sabe. Hely me acordava pra ir de manhã depois que ela se arrumava. Ela sempre estava toda maquiada e arrumadinha, e eu muitas vezes cobri meu pijama com um moletom, e só escovei os dentes antes de ir. Eis a diferença crucial entre nós duas.

– Então porque isso? – ela provoca. Eu dou risada, e puxo o álbum dela.

– Nada – digo.

– Você está aprontando algo. Eu te conheço – Ela diz com um olhar, que tenta ler na minha alma.

Bowie dá um único latido como se concordasse com ela. Os latidos ainda de filhote são engraçados, mas Hely faz uma careta pra ele mesmo assim. como se repudiasse o barulho. Ela devia levar em consideração que seu péssimo gosto musical está acabando com os ouvidos dele.

E com os meus.

– Volta pra sua faxina – retruco, deixando o quarto.

Ouço minha irmã rir.

Eu acho que ela não está mais brava, se é que em algum momento ela realmente esteve.

"Será que é muito estranho tentar descobrir quem é uma pessoa que muito possivelmente já nem liga mais pra mim?" me pergunto segurando o álbum. Fico tentada a voltar ao quarto de Hely e contar minhas ridículas aflições amorosas pra ela. Mas não posso fazer isso.

Não posso, porque existe uma vaga possibilidade dessa pessoa que me escreveu ser o cara que ela ainda ama. Eu ao acho que Henry não seria tão idiota. Mas como ele só começou a namorar Hely dois anos depois de já termos terminado a escola, por enquanto ele ainda se encaixa como suspeito.

"Eu preciso descobrir quem é" penso comigo. Mesmo sabendo que talvez não me leve mais a nada, eu ainda quero saber quem foi o maluco capaz de se apaixonar por mim.

 Mesmo sabendo que talvez não me leve mais a nada, eu ainda quero saber quem foi o maluco capaz de se apaixonar por mim

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