Queda livre

79 11 18
                                    


A mulher no espelho encarou-a por trás de olheiras fundas. Lúcia demorou-se por um momento naquele olhar; as chaves em mãos. Ela mal conseguia se reconhecer ali; as mechas brancas que se destacavam nos cabelos rebeldes e as linhas verticais cortando aqueles lábios sem cor mostravam uma mulher muito mais velha do que ela.

"Cinco meses", disse ao seu reflexo, "parece que faz cinco anos".

Lúcia puxou uma jaqueta preta de um dos ganchos do mancebo e vestiu-se. Em sincronia, ambas as mulheres voltaram sua atenção para uma pilha de cartas sobre a prateleira solitária que se projetava do mancebo. Envelopes lacrados de contas vencidas. Sob a pilha, uma versão mais jovem de si mesma sorria em uma fotografia antiga. Os dedos finos, com unhas roídas na carne, traçavam o contorno do retrato de um homem. Seus braços, protetores, ao redor dela.

"Bruno...", sussurrou enquanto seus olhos brilhavam com lágrimas não derramadas.

Lúcia engoliu seu tormento e enfiou a foto no bolso de trás da calça jeans. Em um movimento mecânico, inseriu a chave no buraco da fechadura e abriu a porta da frente.

Seis meses antes

"Eu desafio você a fazer algo que tenha medo." Bruno provocou-a, seus olhos verdes fixos nos dela; um oceano cheio de promessas.

"Por que isso agora, assim do nada?" Lúcia questionou, mantendo o olhar firme e estreitando a distância entre eles.

"Porque você não pode controlar tudo o tempo todo; você precisa correr riscos às vezes. A vida é assim, minha querida." Ele beijou-a gentilmente nos lábios.

"Não, não, não!" Lúcia protestou. "Não é verdade! Você está sendo injusto. Eu corro riscos; eu larguei meu emprego, comecei a namorar você, eu ...

"Riscos calculados", ele a interrompeu, "você largou seu emprego por um emprego melhor, não para ficar desempregada, e quanto a mim, eu era, sou, seu melhor amigo, o que poderia dar errado?"

"Olha, Bruno", ela endireitou-se em seu colo, "eu não posso dizer nada para rebater o seu argumento sobre o meu trabalho, mas namorar você ... caramba ... é o maior risco que eu já corri. Você é meu melhor amigo, se algo der errado, prá quem eu posso correr? Eu estaria tão perdida! Sem chão!"

"Mas nada vai dar errado porque eu sou seu melhor amigo! Certo? Eu quero testar essa sua coragem. Mostre-me que você é uma mulé macho!" Ele piscou.

"Credo!" Ela riu. "Tá bom, desafio aceito! Você sabe eu que tenho pavor de lugares altos, certo? Então vou radicalizar! Vou fazer paraquedismo! Adeus medo de altura!"

"Não acredito? Sério?"

"Seríssimo! Pode apostar! Lúcia ergueu o queixo desafiadoramente e pressionou seus lábios nos dele para selar sua palavra.

Lúcia trancou a porta e jogou as chaves no bolso da frente da mochila. Um vento repentino forçou-a a fechar a jaqueta. Olhou para o céu; nenhuma nuvem maculava o azul acima, embora o sol de inverno não fosse o bastante para aquecê-la.

Do outro lado da rua, a parada de ônibus estava vazia. Lúcia atravessou a faixa de pedestres e esperou. O aeroporto era longe, mas fácil de chegar. Já no ônibus, encontrou um assento livre na parte de trás e sentou-se para ler. As palavras nas páginas distraíam sua mente do pensamento de seu primeiro salto solo. Nos últimos meses, ela fora uma estudante exemplar, atenta e cautelosa o suficiente para receber o batismo de céu.

Cinco meses antes

"Índia?" Lúcia questionou intrigada. "Por quanto tempo?"

"Por um ano, talvez dois." A firmeza na voz de Bruno não conseguia disfarçar um traço de angústia.

Amor ÁsperoOnde histórias criam vida. Descubra agora