794 dias depois do início

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— Sério, Sofia. Um cachorro pode trazer o jornal, lamber a sua cara, brincar no parque com você. Um gato pode te fazer companhia e ficar te olhando com aqueles olhos assustadores de gato. E até os peixes podem servir como... Sei lá, objeto decorativo. Agora, essa coisa que você cria... Não serve pra absolutamente nada. Além de ser bem esquisita, e...

— Ei! Mais respeito com o Teodoro! — protestou Sofia, socando o ombro de Edu. — Ele é uma ótima companhia sim, é um animalzinho adorável, lindo, e tem muito mais classe que você.

A garota acariciou o casco da tartaruga e a colocou de volta no aquário. Teodoro passeou lentamente pelo espaço seco do tanque e depois entrou em sua piscina particular.

Eduardo franziu as sobrancelhas mais uma vez.

— Cara... Esse bicho é muito estranho. Sem falar que ele fica aí parado o dia todo... Qual é a utilidade de se ter um treco desses?

Sofia respirou fundo.

— Nossa, você realmente não faz ideia de como é ter um animalzinho de estimação.

Bem, ele não fazia mesmo ideia. Sempre quisera ter um cachorro, mas a mãe dele odiava tudo o que fosse peludo e pudesse espalhar excrementos pela casa. Então, o único bicho que tivera na vida tinha sido um peixe Betta, desses que vivem num aquário retangular minúsculo. E o coitado só durou duas semanas.

— Edu, são os objetos que precisam ter utilidade. Eu não cuido do Teodoro esperando que ele seja útil. Ele não precisa fazer nada pra que eu tenha carinho por ele. É o meu bichinho de estimação, e ponto. Entendeu?

— Sei lá... — respondeu Eduardo, fazendo uma careta para a tartaruga. — Você podia ter escolhido um bicho menos feio.

— Eu também podia ter escolhido um namorado menos feio, mas eu quis você, é assim que funciona o amor — retrucou Sofia, rindo.

— Há. Há. Que engraçado. Sério, Sofia, se tem uma coisa que eu adoro em você é esse seu romantismo.

Ela riu ainda mais alto, e depois beijou a bochecha dele. Ele segurou o rosto dela e a beijou de volta nos lábios por um longo tempo. E é claro que o pai da garota apareceu bem nessa hora.

— Epa, vamos dar uma maneirada na pegação aí! E você, moleque, pode dar uma distância de pelo menos vinte centímetros da minha filha.

Aquelas intromissões eram tão comuns que Sofia e Eduardo nem se constrangiam mais.

— Bem, voltando ao assunto... — disse Edu, assim que o pai dela se distanciou — Qual era o problema de criar um cachorro em vez desse troço?

Ela se esforçou para ignorar o emprego da palavra "troço" e contou para Edu a história de seu ex-cachorro de estimação.

Quando Sofia nasceu, o Paçoca já tinha nove anos de idade. Bem velho, pra um cachorro. Ela e o beagle de pelo marrom foram grandes amigos durante cinco anos, até o dia em que ela voltou da escola e o pai avisou que o cachorro tinha partido em uma viagem muito, muito, muito longa para algum tipo de fazenda misteriosa onde ele seria feliz e teria bastante espaço para correr e abanar o rabo pelos campos ensolarados. Ahã. E curiosamente, a tal fazenda era um lugar tão agradável que o Paçoca tinha comprado uma passagem só de ida e ia ficar passeando por lá para todo o sempre.

Jorge não queria falar sobre morte com aquela garotinha de cinco anos. Não conseguia explicar que o Paçoca já estava velho demais, e que tudo o que está vivo vai, eventualmente, morrer um dia.

Mas, com ou sem fazenda misteriosa, Sofia ficou arrasada, e seu pai decidiu comprar um novo animalzinho como consolo.

A ideia de comprar uma tartaruga, ela entendia agora, tinha sido estratégica. Algumas tartarugas vivem até os cem anos. O pai não queria ter que passar de novo pela mesma situação. Não queria que a filha dele, tão cheia de vida, tivesse que enfrentar a ideia de morte.

— É meio irônico, tudo isso — disse Sofia, com um ar pensativo, depois de terminar a história. — Meu pai fez tudo o que podia pra que eu não precisasse encarar a morte. E aí, eu adoeci e tive que aprender a fazer isso de qualquer jeito. Sabe, é uma coisa natural demais pra ser ignorada. De qualquer forma, é meio estranho pensar que o meu animalzinho de estimação tem uma expectativa de vida cinco vezes maior que a minha.

Edu a encarou em silêncio. Teve vontade de mudar de assunto. Odiava pensar naquilo.

— Enfim, como diria Victor Hugo, a vida é uma longa despedida de tudo aquilo que a gente ama — continuou ela, falando com a descontração de quem pede pizza pelo telefone. — O problema é que, às vezes, essa despedida nem é longa.

Ok, já era o suficiente.

— Que droga, Sofia... — interviu Edu. — Essa sua mania é insuportável.

— Que mania?

— Essa sua mania de ficar o tempo todo citando alguma frase deprimente que você leu. É irritante! Você parece uma idosa. Quando você começa com essas suas frases feitas, você me faz lembrar a minha avó. Com a diferença de que as frases da minha avó são muito mais profundas e interessantes.

— Sua avó tem mais de oitenta anos. É claro que eu não posso competir com ela em sabedoria — respondeu a garota, rindo.

— O nome Sofia significa "sabedoria", então é seu dever ser sábia, não tem desculpa. Mas é sério, as frases da minha avó são muito melhores.

— E quais são as frases de sabedoria da dona Aparecida? Fala logo pra eu anotar no meu caderninho.

— Ah, são muitas, mas a minha favorita, a mais profunda, a frase que me deixa com lágrimas nos olhos, é: 

Ele fez uma longa pausa e ergueu os olhos para o horizonte de um jeito teatral, antes de declamar com voz de narrador:

  — "Bolo quente dá dor de barriga."  

Sofia não estava esperando por essa. Nada a faria parar de rir pelos próximos segundos. Edu riu um pouco também, mais pela felicidade de ter encontrado uma garota que realmente achava as piadas ruins dele hilárias. Ficou concentrado em reparar no quanto ela era linda, e no quanto os olhos dela irradiavam alegria, e no quanto ele a amava desesperadamente, e no quanto ele queria que a principal ocupação de sua vida fosse fazê-la rir daquele jeito.

— Isso é porque você ainda não ouviu a incrível relação que ela faz entre coceira na mão e sucesso financeiro. 

Sobre o fimOnde histórias criam vida. Descubra agora