3 dias antes do fim

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Foi um alívio ver que o banheiro estava vazio. Eduardo olhou para as cabines com portas fechadas, para os azulejos brancos, para os mictórios e para o espelho. Não era o melhor refúgio do mundo, mas parecia um lugar sossegado onde ele poderia surtar em paz.

Porque, caramba, ele estava surtando.

Ele amava tanto aquela menina. Tanto. Nem devia ser saudável amar alguém daquele jeito. Quando entrou na vida dele, Sofia mudou a perspectiva de tudo. Antes, Edu tinha um monte de ambições. Ser um engenheiro rico, viajar para os Estados Unidos, comprar uma caminhonete e coisas assim. No momento em que se apaixonou por Sofia, todo esses desejos se tornaram bem idiotas. Danem-se a faculdade, as viagens e os carros caros.

Tudo o que ele desejou, no momento em que se perdeu naqueles olhinhos brilhantes, foi ficar com Sofia pra sempre e fazer dela a pessoa mais feliz do universo.

Só essas duas coisas. Era só o que importava. E era justamente isso o que ele não podia fazer.

Ele não podia ficar com ela pra sempre, porque ela estava morrendo. Todo mundo, inclusive a própria Sofia, sabia que ela só tinha mais um ou dois anos pela frente. E ele não podia fazer nada pra consertar isso. Não podia fazer o corpo dela funcionar direito, não podia impedir que ela sentisse toda aquela dor. A dor que acompanhava a doença, e também a dor de ter sonhos que não podem ser realizados, como viajar pra um festival de balonismo na praia.

Ela tinha dezesseis anos. Que droga. Dezesseis anos. Ela não devia estar lidando com aquilo. Não devia depender de uma máquina idiota pra viver.

Eduardo encarou sua imagem no espelho do banheiro. O choro estava entalado na garganta, fazendo o pescoço doer. A cara dele estava toda vermelha.

E aí ele se lembrou do modo como Sofia lidava com aquela situação horrível. Dizendo que o sofrimento fazia parte do plano de Deus pra vida dela e blá blá blá. Aquelas conversinhas de crente sempre o deixavam revoltado.

Porque como, em qual planeta, aquilo podia ser justo? Como aquela menina linda, gentil, inteligente, morrendo antes mesmo de virar adulta, podia ser algo justo? Como podia ser justo que a droga de uma doença arrancasse dos braços dele a coisa que ele mais amava na vida?

Não era justo, nem de longe. Tudo o que ele queria naquele momento era socar alguma coisa. Quebrar uns pratos ou algo assim.

E então ele olhou para a saboneteira. Um recipiente transparente, em cima da pia, cheio de sabonete líquido. Antes de pensar racionalmente sobre, ele arremessou o objeto contra a parede com toda a força. O plástico rachou e o sabonete líquido escorreu pelo chão.

Aquilo tinha ajudado um pouco. Não satisfeito, ele começou a chutar as portas das cabines do banheiro. Chutou a primeira porta, a segunda, a terceira... Até ser interrompido por um som de descarga. Um velhinho saiu da quarta cabine e encarou Eduardo com olhos tão arregalados que pareciam que iam saltar do rosto.

O velhinho ajeitou o suspensório que usava e se dirigiu para a pia. Procurou pelo sabonete e encontrou os destroços da saboneteira no chão.

— Não dá nem pra lavar a mão, agora. Mas que coisa. O sabonete não fez nada contra você, menino.

Eduardo começou a chorar descontroladamente, na frente do tal velhinho desconhecido. Parecia que ele estava guardando aquele choro há eras, e agora estava botando pra fora tudo de uma vez.

O velhinho, um tanto desorientado com a cena, deu uns tapinhas consoladores no ombro de Eduardo, que soluçava.

— Calma, rapaz. Vai ficar tudo bem — disse o idoso, meio sem jeito. — Eu também fiquei assim quando descobri que tinha câncer. Você vai aprender a lidar com a doença, com o tempo. A quimioterapia vai fazer o seu cabelo bonito cair, é verdade, mas não é nada que você não possa superar.

Depois de um minuto ouvindo o velho falar sobre câncer, Eduardo conseguiu controlar um pouco o choro e explicou:

— Eu não tenho câncer.

— Não? Então é AIDS? Porque hoje em dia o tratamento de AIDS é muito...

— Eu não tenho nenhuma doença, tá bom? — disse Edu para o desconhecido. — É a minha namorada, a Sofia, ela tem um problema nos rins.

O velhinho fez uma cara de esclarecimento.

— Ah, sim, entendo. Olha, você não pode impedir uma doença, mas pode ficar do lado dessa moça, aliviar as coisas pra ela, entende? Faça o que você pode.

Eduardo tentou limpar o rosto na camiseta.

— Só que isso não é motivo pra deixar os outros sem sabonete — disse o velhinho, e logo depois saiu do banheiro.

Edu pegou umas toalhas de papel para limpar as lágrimas e assoar o nariz, e depois se sentou no chão do banheiro, com as costas apoiadas na parede, perto da saboneteira quebrada. Tentou respirar fundo e se acalmar. Estava tremendo, mas aquele surto tinha servido para aliviar um pouco da angústia.

Escondeu a cabeça entre os joelhos e fechou os olhos, pensando que Sofia já tinha superado as expectativas dos médicos antes. Poderia superar de novo. Poderia conseguir um transplante e viver por mais tempo que o esperado.

E aí, ele ouviu a voz dela, chamando o nome dele do jeito mais doce possível. Talvez todo aquele pânico de perdê-la estivesse deixando-o louco de verdade. Já estava até escutando vozes e tudo mais.

Mas quando ergueu a cabeça, Sofia estava lá em pé, com a camisola do hospital, na frente dele.

— O Seu Valdomiro foi me avisar que o meu namorado estava quebrando o banheiro.

Sofia deu um sorriso triste e sentou no chão ao lado de Edu. Ela o abraçou com força e beijou a bochecha molhada dele.

— Você tá no banheiro masculino — murmurou Edu.

— É, dá pra perceber, principalmente estando tão perto desse negócio nojento aqui — disse Sofia, apontando para um dos mictórios.

Eduardo secou as lágrimas. Não queria que Sofia o visse naquele estado. Não queria que ela pensasse que ele era fraco demais para lidar com os problemas dela.

— Desculpa, Edu. Me desculpa mesmo — ela sussurrou. — Eu não devia ter te pressionado com o negócio da viagem. Eu sou bem egoísta às vezes.

— Eu não ligo se você é egoísta ou não — murmurou Edu — Eu só queria que você ficasse comigo até eu morrer. Pode ser egoísta à vontade, mas fica comigo.

Ela encheu o rosto dele de beijos.

— Você não precisa chorar escondido, Edu. Eu também quero poder cuidar de você, quando você estiver mal. Tá bom?

Ele assentiu e olhou nos olhos dela. Sofia ficou alguns segundos em silêncio, com os dedos acariciando a nuca de Edu, até ele dizer:

— Eu sei que você ainda quer falar sobre o tal festival de balão. Não precisa ficar se segurando pra não falar. Manda, me diz no que está pensando.

— Eu só tentei te convencer sobre o negócio do festival porque... Sei lá, eu estou sentindo no meu coração que eu não vou ter outra oportunidade como essa. Eu sei que vou pra um lugar melhor quando a minha vida acabar, mas às vezes eu fico com uma sensação de que estou desperdiçando o tempo que eu tenho aqui. Tipo, eu não quero passar o resto da vida deitada numa cama. Eu ainda posso realizar o meu sonho de ir pro festival. Eu estou ótima hoje, mas e se depois de amanhã eu não estiver mais? Sabe, eu fico ansiosa pensando que vai chegar esse momento em que eu vou piorar a ponto de não conseguir ter energia pra fazer as coisas que eu quero.

Meu Deus, aquela menina ia fazê-lo enlouquecer. Ele olhou pro rosto de Sofia. Viu a esperança nos olhos dela. Ainda não tinha desistido da ideia maluca de fugir do hospital. No fundo, ela devia saber que ele acabaria dizendo sim, que faria qualquer coisa para vê-la feliz.

— Me fala mais sobre o seu plano de fuga brilhante — disse Edu, sendo bem irônico quanto à parte do brilhante.

Sofia abriu um sorriso que fez tudo dentro dele derreter. Os olhinhos castanhos brilharam transbordando alegria, como se o que ele tivesse dito fosse um sinal claro de que os sonhos dela se tornariam realidade em algumas horas. Naquele momento ele soube que não haveria saída a não ser dar um jeito de dizer sim ao desejo da namorada.

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