Eu olhava para a janela acompanhando o pingo de chuva que escorria. Irônico como a natureza podia dar sentido para a realidade. A minha amizade com Alice estava em um processo crescente bom. Finalmente aquela loucura de encontros e desencontros estava fazendo sentido. Até sua ida para Florianópolis jogar um balde de água fria em tudo.
— Não acho que ficar com essa cara de velório ajuda muito – Alice sentou na cadeira do meu lado – Menos drama, por favor.
Revirei os olhos.
— Se você não sente nada, não me culpe por sentir. – bufei – Isso é culpa sua. Você insistiu em ser minha amiga, eu vivia muito bem sem você.
Alice arregalou os olhos e levou as mãos na altura da cabeça como se fosse se redimir.
— Vai com calma! – ela se aproximou – Vou te contar um segredo, quer ouvir?
— Não.
— Vamos fingir que aceitou como uma boa garota que é – seus lábios se aproximaram do meu ouvido esquerdo – Não sei como vou ficar sem você.
Me virei pra encará-la. Como assim?
— O que quer dizer com isso?
— Nada. Eu não disse nada – ela deu de ombros – Quer café?
— Alice.
— Que bom que você não quer, pois eu quero. Vou comprar um. – ela se pôs de pé – Te vejo depois, Júlia.
Eu odeio essa garota!
Peguei minha mochila com raiva e coloquei nos ombros. Não era possível que eu podia ser tão idiota. Por que diabos isso me assustava tanto? Por que eu estava perdendo a minha cabeça? Eu não me lembro de ser sensível assim. Respira, Júlia. Juntei o resto de bom senso que me sobrava e decidi que eu precisava naquele momento espairecer a minha mente. A melhor forma? Lendo.
De modo geral eu não ligava muito por ter que andar de transporte público. Isso muitas vezes me fazia bem. Só o fato de estar no meio de outras pessoas e ver coisas diferentes ao meu redor, já se tornava algo animador. Vasculhei meus bolsos e achei alguns trocados que minha mãe havia me dado antes de sair para trabalhar. Peguei o ônibus no ponto perto do colégio e me dirigi para o meu parque preferido.
O caminho não apresentou nada de novo, muito pelo contrário – as coisas pareciam ter uma rotina ligeiramente desregrada. Ao chegar, fui ao meu lugar de costume, saquei o livro da minha mochila e comecei a ler. A leitura da vez era "O Caçador de Pipas" e, por minha sorte, relacionamentos conturbados passavam bem longe disso. A história em si era triste – muito triste, por sinal. Mas era uma leitura gostosa e fácil. Tudo o que eu precisava naquele momento.
O bom de ler é que eu conseguia me desconectar do mundo. Conseguia encontrar minha âncora interior e me centrar, voltar a ser a pessoa calma que eu podia ser. Auto controle sempre foi uma qualidade minha. Eu sabia como e quando me segurar. Mas quando se tratava de Alice eu perdia as estribeiras. Não conseguia me controlar, como se ela despertasse outra versão de mim. Uma versão sem medo e sem papas na língua, logo, um lado mais sincero.
Admito que essa sensação de liberdade era revigorante na maioria das vezes. A forma como eu podia e gostava de me sentir livre para ser e dizer o que eu quisesse. A ideia de perder isso me assustava e, consequentemente, me levava a agir de maneira ainda mais irracional. As coisas eram mais fáceis quando minha única amiga próxima era Sofia.
Ela conseguia respeitar meu espaço e não confrontava minha sutil acidez. Porque, convenhamos, eu adorava um bom sarcasmo. E amava ter controle disso. O que tornava a amizade com Alice mais excitante era justamente o fato dela não respeitar e me confrontar de igual para igual. O desafio era maravilhoso e a vontade de vencer era quase um combustível.
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Sete Luas
RomanceApós uma tragédia familiar, Júlia se fechou para o mundo e tudo o que envolvesse sentir. Ela se encontra em uma fase turbulenta da adolescência e no meio de milhões de questionamentos: escola, família, vestibular, amizades e o que escolher para o se...