Devaneios macabros

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Lingueglietta, 2007

— É... parece que está tudo pronto. Aposto que Amélie vai adorar a surpresa. — Luna falou para as paredes ouvirem. — Não há como ela dizer outra coisa além de "sim"!

Enquanto segurava uma foto de Amélie na mão, Luna exibia um sorriso de canto de boca. A luz da lâmpada estava fraca, mas iluminava o suficiente do sótão encardido. Era um simples quadrado de madeira antiga, cheia de poeira e teias de aranha nos arredores, com caixas e mais caixas assinadas na parte da frente, que guardavam todo tipo de coisa.

— A não ser que... — o sorriso de Luna se fechou, e ela pousou a foto numa mesa velha que tinha sido evidentemente atacada por cupins. —, não, simplesmente não tem como ela me recusar. — Começou a caminhar pelo cômodo, enquanto mantinha a conversa consigo mesma. — Mas e se... e se ela estiver me fazendo de boba esse tempo todo?

Luna cessou a caminhada.

Sua mão estava pousada no queixo, e sua postura pensativa chegava a ser icônica, parecia uma réplica de estátua. Até que começou a rir, inicialmente fraca, e depois mais intensamente, à medida que seus pensamentos começaram a borbulhar em sua cabeça.

— Bem, só há uma maneira de descobrir. — ela voltou a caminhar lentamente pelo cômodo, como se aquilo a ajudasse na organização de pensamentos. — E espero que sua resposta seja "sim", caso contrário...

Sua mão foi de encontro com a testa várias vezes enquanto ela fazia um trajeto de ida e volta constante ao lado da mala que estava jogada ao chão. Seu rosto começou a tremer em negação, como se sua mente estivesse formulando algo inaceitável.

— Não, não, não e não! — seu pescoço se curvou para cima, fazendo-a encarar o teto. Sua voz estava aumentando de timbre, alguma coisa estava atormentando a mente de Luna. — Não aceitarei nada além de um sim, nem mesmo um talvez! Aquela... ela me deve isso! — o quarto vazio fazia com que suas palavras ecoassem. — Sempre que estávamos juntas, eu fiz de tudo por ela, por nós!

O peito de Luna se retraía e expandia logo em seguida, sua garganta passou a se contorcer para baixo, numa tentativa exagerada de engolir a própria saliva. E com dificuldade, desceu uma lágrima solitária de seu olho esquerdo. Suas mãos estavam tremendo e sua testa começava a transpirar.

— Faz sentido, não é mesmo? — pergunta em voz baixa encarando as próprias mãos, trêmulas. — Eu te quero, mas se você não me quiser de volta então vou deixar de te querer... ainda assim, não quero que queira outra pessoa. Faz sentido, não faz?

Uma risada histérica invade os pulmões de Luna gradativamente, e com auxílio do dedo, ela enxugou sua lágrima derramada e lambeu-a. Não dava para saber o porquê daquela lágrima ter decido, não aparentava ser tristeza nem felicidade, parecia ser algo mais, como se uma ideia genial e doentia tivesse passado por sua mente, e ao mesmo passo que ela ficara excitada com isso, sentia-se também culpada por se sentir de tal forma. Seu olhar estava embriagado de ironia e dor.

— Se eu for mesmo fazer isso — andou pelo quarto como se estivesse atordoada, acariciando a cabeça e olhando compulsivamente ao redor, procurando por algo que não sabia exatamente o que era. —, preciso traçar um plano. E ele precisa ser impecável...

Foi nesse momento que, por coincidência ou não, uma caixa amassada lhe chamou atenção. Estava semiaberta e exibia um minúsculo baú verniz com uma pequena fechadura dourada no centro. O material era duro, mas nem tanto, o suficiente para esconder um segredo, mas insuficiente para mantê-lo por muito tempo. E não era atoa que sua lateral estava com uma rachadura profunda, seja lá o que fosse, era bem antigo.

Luna aproximou o baú do seu olho e espiou pela fresta o que havia dentro daquela curiosa caixa. Assim que a inclinou, um objeto grosso deslizou até a outra lateral. Mesmo com a escuridão predominante, pode enxergar uma relíquia reluzindo sem força.

Petulantemente, Luna agarrou a lateral a partir da rachadura com os dedos e quebrou usando sua força. Um buraco grande se formou e ela jogou o pedaço quebrado na caixa. Nem precisou encarar o objeto pela fresta novamente para ver o que era, apenas inclinou o baú de volta para si e deixou que ele deslizasse para sua mão aberta.

Na palma da sua mão, um objeto circular dourado reluzente, preso por uma corrente igualmente brilhante. No centro, entre pequenos mecanismos, haviam dois ponteiros pretos exibindo números romanos em ângulos diferentes. Era um relógio de bolso, mas bem mais sofisticado do que os modernos. Aquele tinha uma borda com linhas desenhadas e alguns detalhes metódicos, provavelmente algum tipo de escrita antiga, num estilo quase tridimensional.

Era realmente uma relíquia.

-✻-

O tempo foi passando e cada vez mais o sótão se tornou uma espécie de santuário para Luna. Agora ao invés de um cômodo sem mobília e repleta de caixas espalhadas pelo chão, o lugar se tornou uma espécie de quarto de planejamento, com uma mesa de canto com vários livros sobre hipnose e pecados capitais empilhados nas laterais. Um quadro médio de cortiça com fotos e anotações presos por agulhas coloridas à frente e menos poeira do que anteriormente.

A lâmpada fora trocada cerca de duas vezes de acordo com a necessidade de uso, uma luminária de mesa foi acrescentada e mais fotos e mais anotações iam ganhando espaço no quadro. Os livros ganhavam marcações em suas páginas e amassados em suas bordas. Por meses a fio Luna se dedicou ao estudo obsessivo para transformar seus devaneios macabros em um plano palpável.

(...) a hipnose feita má intencionadamente pode ser vista como uma ferramenta de manipulação e controle da mente, podendo causar alucinações ou delírios através de determinados ganchos cerebrais.

— Bem, isso parece perfeito — Luna sussurrava enquanto se dobrava para mais perto da página para ler com mais atenção em uma de suas noites de estudo intenso no sótão. —, significa que eu posso criar situações de acordo com as minhas vontades... desde que elas sejam premeditadas.

Ninguém ousava invadir o espaço dela, se perguntassem, falaria que estava estudando e se dedicando à leitura — o que não deixava de ser verdade —, e que preferia o sótão por seu isolamento. Era uma explicação plausível, visto que o lugar abafava barulhos desnecessários e evitava distrações.

Porém, ainda assim a mãe de Luna ficava preocupada e de vez em quando gostava de fazer pequenas visitas a filha, geralmente acompanhada com uma desculpa em mãos, em forma de tigela ou sanduíche.

— Está tudo bem filha? — Franciele aproveitava os pequenos momentos em que entrava no sótão para vasculhar cautelosamente ao redor. É claro que nunca via nada de relevante que pudesse incriminar o comportamento estranho da filha, já que a maioria das coisas estavam na mesa escondida num canto quase todo tampado pela parede. — Não acha que está se esforçando demais?

— Não precisa se preocupar, mãe — o sorriso de Luna era fraco e forçava, e suas olheiras contrariavam seu discurso. — Descanso sempre que sinto necessidade.

No final daquele ano, Luna recolheu todo o material que não precisava mais. Tudo que era necessário estava gravado em sua memória, suas anotações foram rasgadas e queimadas, os livros foram distribuídos em sebos e centros de doações diferentes para não levantar suspeita. A única coisa que restara e que porventura poderia revelar qualquer vestígio de suas intenções recentes era um papel grosso dobrado sozinho debaixo da sua luminária.

Em sua superfície, estava escrito "Destino do passageiro: Aeroporto de Porto. Ida & Volta. 2008" e demais informações sobre assento e especificações das datas e horários de voos.

— Acho que isso vai ser o suficiente para provar que sou capaz de mostrar meu amor!

E com isso, Luna fitou seu ticket com demasiada seriedade e suspirou fundo, com um semblante que por si só já dizia "está decidido" e apagou a luminária. Se retirou do sótão escuro e subiu as escadas, sabendo que só restava esperar...

A Maldição de LunaOnde histórias criam vida. Descubra agora