Fuga

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Porto, 2008

— Considere aquele um... beijo de despedida! Vamos continuar sendo só amigas? — Amélie falou desconcertada.

Nesse momento, os pelos da cabeça de Luna se eriçaram. Sentiu sua cabeça tremendo levemente e a visão ficando um pouco turva. Sabia que havia chegado a hora. Infelizmente, Amélie havia dado a resposta incorreta...

— Vou te hipnotizar! — ela disse de repente, com os dentes completamente à mostra, num sorriso histérico. — Vou fazer você me amar por bem ou por mal, e se não fizer, você vai desejar estar morta...

Amélie soltou uma risada, incrédula das palavras de Luna. Por consequência, isso só a provocou e deu mais força a ela quando pegou um objeto brilhante e o estendeu com veemência.

— Eu quero que você observe esses ponteiros... — Luna pediu delicadamente.

Apesar de tentar evitar o jogo repentino de Luna, Amélie não conseguiu escapar da sedução rápida e arrebatadora do lustroso objeto dourado.

— Inspire calmamente pelo nariz, e solte o ar pela boca.

A sonolência no rosto de Amélie estava evidente. Obedecia sem relutância e as frases foram ficando sem sentido para ela, que estava quase inconsciente no momento.

— ... quando você acordar, às oito e quarenta e cinco da manhã, tudo vai estar em seu devido lugar, tirando o fato que eu vou estar pendendo morta numa corda amarrada fortemente no meu pescoço, bem no centro do seu quarto. — a respiração de Luna estava acelerada e ao mesmo tempo que seu rosto revelava prazer, havia também um toque de... amargura, talvez? — ... então nesse momento você verá minhas artérias estouradas e sangue escorrendo pelo meu nariz, até que isso me entupa e o líquido chegue a escorrer até pelos meus olhos. Só então, meu corpo vai ceder...

A feição de Luna parecia mudar de momento em momento, passava da culpa para a aceitação e então para a melancolia na distância de uma palavra para outra. E enquanto ela falava, ganhava mais confiança e ia desenvolvendo melhor suas frases, fazendo-as trilhar um caminho sem escapatória.

Queria que suas palavras tivessem efeito em momentos específicos e aparecessem no menor sinal de atitude que previa que Amélie teria.

Tudo havia sido doentiamente calculado há um tempo. E se antes havia hesitação por parte de Luna, agora havia determinação de levar aquilo até o final. Ela não parou de balançar o objeto até que a última palavra tivesse sido dita.

Só então, guardou o objeto de volta no bolso e se levantou. Se aproximou de Amélie que estava quase babando de tão desnorteada. A segurou no colo e teve o cuidado de levá-la sem estardalhaço até a cama de seu quarto.

Amélie provavelmente não ouviu o "durma" sussurrado de Luna antes da mesma sair pela porta que revelava uma nevasca estrondosa do lado de fora, ceifando os lábios e castigando a visão de qualquer um que ousasse atravessá-la.

-✻-

"Agora tanto faz", pensava Luna no caminho de volta para o aeroporto. "Não importa mais", retrucava em voz baixa para si mesma enquanto seus passos ganhavam mais força, mesmo que seus joelhos estivessem fracos. Havia se preparado para aquele momento antes, por isso não foi muito difícil fazer seu trajeto de volta à casa.

Após ter conseguido enfrentar o trecho entre a casa de Amélie e o aeroporto em meio à neve, ficou esperando durante algumas horas o horário de decolagem do avião e manteve a respiração regular e os pensamentos controlados, evitando conversar com desconhecidos.

Aliás, essa parte foi bastante fácil, já que quase não havia ninguém num horário daqueles. E as poucas pessoas que estavam ali pareciam igualmente desinteressadas em fazer qualquer contato, fosse visual ou verbal.

A única hora que precisou fazer o mínimo de contato foi na entrega dos documentos e no cumprimento cordial com as aeromoças.

No avião tentou se concentrar em dormir, mas sua mente estava há milhões e não deixaria ela descansar tão cedo. Era comum que estivesse naquela ansiedade toda, no fundo ainda reprimia pensamentos que lutavam para lhe dizer que havia "passado dos limites" ou que "Amélie não merecia isso", porém todos esses pensamentos eram extinguidos antes mesmo que pudessem tomar uma forma concreta.

Enquanto olhava, pela janela, o avião decolando e deixando para trás aquele horizonte branco, sabia que quando chegasse o momento certo elas se encontrariam novamente...

A Maldição de LunaOnde histórias criam vida. Descubra agora