Não posso dizer que saí muito daquele quarto durante os poucos dias que ficamos no navio. Era impossível tirar os olhos de Bernardo. Sua pele, seus cabelos bagunçados, seu toque... mas nada se comparava aos seus olhos. Observavam-me como se eu fosse algo importante. Como se eu fosse capaz de manter aquele sorriso em seu rosto. E eu me sentia bem com aquilo. Eu me sentia bem em falar sobre a minha vida, sobre meu pai, sobre minha mãe, sobre qualquer coisa. E eu ouvi tudo o que ele tinha a me dizer, também. Sobre suas viagens, sobre sua família, sobre como ele nunca havia confiado em alguém, antes, como confiava em mim, agora.
Confesso que, quando o navio atracou na costa de algum país africano, eu fiquei triste: queria mais alguns dias naquele navio com Bernardo.
— Nós ficaremos por aqui, Bernardo — o capitão disse, ao se apresentar no momento em que estávamos prestes a descer do navio. — Se precisar, ligue-nos. Não sairemos sem você.
Bernardo o abraçou fortemente e, com um aperto de mãos em seguida, começou a descer as escadas. Eu o segui e abanei para os caras do navio. Quando chegamos no deck do porto em que estávamos atracados, Bernardo segurou a minha mão e, com a outra, continuou carregando a mala com algumas de nossas coisas.
— Eu não acredito que estou na África — eu murmurei.
— Eu não acredito que estou aqui com você. — e ele beijou minha bochecha.
— Onde é que vamos agora? A carta de sua mãe não foi muito específica.
— Ah, foi bastante. Meu lugar preferido não é apenas no “continente africano”. Fica bem aqui, nesta cidadezinha da África do Sul.
— É mesmo? Alguma instituição por aqui?
— Exatamente. Foi a primeira que foi construída. Foi feita em uma cidade portuária para que, sempre que alguma coisa chegasse por navio, as pessoas não tivessem de esperar dias de viagem de caminhões para terem as comidas ou utensílios de suas necessidades. E é o local onde aquela foto foi tirada. — eu observava Bernardo falar. Percebi que estava franzindo o cenho. — A única coisa que não faço a menor ideia.... é como é que mamãe escondeu um tesouro naquele lugar.
Eu segurei firme sua mão.
— Pronto para descobrir? — eu perguntei. Ele apenas sorriu e nós começamos a correr.
+++
Quando nós chegamos na instituição — uma construção horizontal enorme, com vários dormitórios, refeitórios, uma quadra poliesportiva e toda a parte administrativa do lugar —, Bernardo e eu fomos imediatamente separados. Um grupo de mulheres africanas me puxaram e começaram a me fazer andar para a direção oposta que Bernardo ia. Ele era acompanhado por homens, todos negros, os quais usavam trajes típicos — uma espécie de mantos coloridos. Tudo o que eu vi foi Bernardo murmurar “vai ficar tudo bem”. E eu entendi que era algo normal por ali.
As mulheres, apesar de eu não entender uma palavra do que diziam, me levaram para uma parte de trás da instituição, em um quarto grande que me parecia um camarim. Haviam roupas normais e as roupas típicas. Havia maquiagem, acessórios, panos de enfeite. Quando me dei conta, eu estava sem minha blusa — um pano vermelho passando por cima de um dos ombros e um pano branco passando pelo outro. De alguma forma, elas uniram esses tecidos e fizeram uma espécie de nó ao lado do corpo, me deixando com aquele vestido típico. Nos pés, usei chinelos.
Meus olhos foram vendados antes de sairmos dali. Eu ria de nervoso, sem saber o que estava acontecendo. Eu entrei em muitos corredores; pensei que ficaríamos na parte de dentro do lugar. Engano meu. Uma enorme porta se abriu e eu comecei a ser guiada para a parte de fora. Eu sentia a areia entrar em meu chinelo, passando pelos meus dedos. Eu ouvia muitas vozes e comecei a sentir vergonha.
A mulher que me guiava parou e eu parei, também. Ela cochichou algo em meu ouvido, mas eu não entendi, apenas sorri nervosamente. Em seguida, ouvi vozes mais grossas. Eu ouvi a voz de Bernardo falando e, de repente, se calando.
A minha venda foi tirada.
Eu o vi, ainda usando calça jeans, mas desta vez com um pano vermelho por cima de um ombro, e um pano azul por cima de outro. Os panos faziam um nó nas costas, mas deixavam seus braços e parte do peito à mostra. Ele estava lindo, ainda mais com aquele sorriso. Parecia um príncipe africano.
— Bernardo? — eu ecoei, olhando em volta todas aquelas pessoas. — O que é isso? — eu cochichei, meio que gritando para ele me ouvir. Ele sorriu.
— Essa é a forma que eles dão as boas vindas para nós. E, toda vez que um casal entra aqui, eles são separados para que possam se encontrar em sua verdadeira forma — ele olhou para seus panos —, com as cores da sua alma.
— Minha alma é vermelha e branca? — eu perguntei. Bernardo começou a se aproximar e eu fiz o mesmo, tentando ignorar os olhos em minha direção.
— Branco quer dizer calmo. Pacífico. Vermelho quer dizer amor. Paixão. — uma mulher disse, aparecendo do nada e parando quase que entre mim e Bernardo. Ele pegou em minhas mãos e eu segurei as dele com força. — Bernardo está vermelho também. Apaixonado. Nunca colocamos a cor vermelha nele. A cor azul é nobre. Coração valente.
— Alice, essa é Jah'ni. Ela cuida da instituição aqui. Era bastante amiga dos meus pais.
Eu assenti com a cabeça e a mulher fez o mesmo.
— Eu não posso mentir para você, Bernardo. — a mulher começou. — Eu sei porque está aqui. Eu vi a adrenalina em seu rosto quando atravessou o portão de entrada correndo.
— Você sabe do tesouro.
— Sua mãe me fez prometer não contar. — ela explicou. — Disse que você descobriria.
Ele balançou a cabeça, sorrindo.
— É bem a cara dela. — ele falou.
— Então, você está pronto? — Jah'ni pediu.
— Para quê?
— Para ver o tesouro?
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O projeto.
Roman d'amourAlice Pardal não está preocupada com as notas que terá durante o semestre de sua faculdade de Psicologia; ela sabe que é inteligente e que, se estudar um pouco, já dá conta do recado. O problema é os projetos comunitários que ela precisa fazer, para...