Capìtulo 20

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“USUFRUA DO AMOR COM CARINHO E DO PRAZER, COM TOTAL ABANDONO...” - Nossa Fernanda! O tempo que você passou em Londres te fez muito bem! Você está maravilhosa! – Disse do seu jeito sempre espalhafatoso e teatral – Se eu fosse homem, juro que te pegava!Cecília tinha insistido em saber a que horas o meu vôo iria chegar pra ir me buscar. Fazia questão, apesar de eu dizer não precisar.- É a segunda vez que você me diz isso. Desse jeito eu vou acreditar que você está gamada em mim! – Nos abraçamos, saudosas.- Deus me livre! Ainda não cheguei a tanto! Adoro macho e estou muito bem com o Carlos. Muito obrigada! Mas... - Me agarrou pelo pescoço - ...se um dia eu mudar de time, minha primeira opção será você, delícia.- Muito obrigada pela parte que me toca! Fico muito honrada pela preferência. Farei de tudo para merecê-la! – Ela me deu um tapa no braço – Ai! Mas, se você for sádica, não fico com você!Me fez careta. – Engraçadinha... Vamos, vou te levar em casa e depois tenho que voltar ao escritório. Infelizmente não vou poder ajudar na arrumação do teu apê. Sorry!No caminho, fomos contando as novidades. Carlos e Cecília finalmente pareciam ter se acertado, depois de 3 anos de namoro. Agora, decidiram morar juntos.- Você o ama Ceci? - Sim! Absolutamente. Você me conhece, sabe como eu era. Mas, agora quero que dê certo.- Tô muito feliz por você Cê! – Coloquei minha mão em cima da dela, na marcha – Espero sinceramente que dê certo.- Vai dar... – Ela fez uma pausa – E você e o Henrique?- O que tem ele?- Você sabe. Ele é completamente louco por você e você o esnoba o tempo todo. Por que não dá uma chance pra ele, Nanda?- Porque não dá. Somos completamente diferentes. Pensamos diferentes, temos objetivos diferentes.- Isso não é desculpa!- Não, não é uma desculpa. Eu... simplesmente não o amo. – Olhei pela janela do carro admirando a paisagem que corria rápido lá fora, como meus pensamentos. Lembrei da vez que estive por ali com “Sabrina” e de como ela fez renascer em mim a paixão por essa natureza exuberante.- Você não precisa amá-lo. Pra uma pessoa como você, gostar já é mais que suficiente.Depois de alguns minutos estacionamos o carro na porta do meu prédio.- Chegamos!O porteiro ajudou a levar minhas malas até o 6º andar. Despedi-me de Cecília e subi. Graças aos cuidados do meu ex-locatário, o apartamento se encontrava em perfeito estado. Achei que precisava apenas de uma nova pintura. Nova vida, novo tudo. Recomeço!Havia tantas coisas a serem feitas. Passei o primeiro final de semana ajeitando o apartamento. Desfazendo malas e velhas lembranças. O piano ainda se encontrava lá. Um pouco empoeirado do tempo que ficou em desuso, mas em perfeito estado. Eu teria que mandar afiná-lo. Henrique, como sempre atencioso e solícito se ofereceu pra ir comprar o carro novo comigo. Com o mesmo pensamento de antes de viajar optei por um carro simples e esportivo, diferente da ostentação do anterior. Comprei um Crossfox amarelo. Achava que combinava mais com a minha nova fase, simples e prática.Henrique não falava diretamente em casamento, mas sempre que tinha oportunidade, lançava indiretas acerca do assunto. O que eu me fazia de indiferente. Não podia negar que Henrique era um homem clássico, atraente e sedutor. Sabia como conquistar uma mulher e estava sabendo ser paciente com o que queria de mim. Gostava de sua companhia e apesar de vê-lo em certas ocasiões com olhos desejosos, não o queria pra mim.Eu queria ser livre. Cultivava minha solteirice como um ritual diário de resistência.Passaram-se dois meses desde que tinha retornado ao Brasil. No escritório eu tentava aplicar tudo que me foi ensinado nos cursos que participei em Londres. Tanto quanto me era permitido. Até o ponto de achar que o escritório da Merck havia se tornado tão pequeno como uma caixa de fósforos pra mim. Eu tinha planos futuros de conseguir montar uma firma de pequeno porte, de importação e depois, com uma logística mais abrangente, eu poderia partir pra área da exportação, que era realmente o meu forte.Assumi o meu novo cargo e Adriana passou a ser minha subordinada direta. Não me poupando dizer que vira e mexe fugia de suas nada sutis investidas, para que repetíssemos a noite de 4 anos atrás. O que não era, em absoluto, do meu interesse. João Carlos não perdia a oportunidade de fazer gracejo com a situação, já que ficara evidente para os mais chegados, que ela dava em cima de mim. A máquina de café expresso também era testemunha do meu empenho em evitá-la. Esse era um capítulo a parte, que apesar de me incomodar um pouco, não tinha importância. O chato do Mauro fora transferido de setor. E apesar de trabalharmos no mesmo prédio, quase não nos víamos. Agradeci por isso. Pelo menos eu teria um pouco de paz.As coisas no escritório fluíam cada vez melhores. Dedicava-me a cortar custos e agilizava o fluxo de mercadorias. Economizando tempo e otimizando tarefas antes mais burocráticas. Ganhamos mais contratos e eu, dois aumentos de salário.Durante todo esse tempo procurei me manter ocupada para não pensar em procurar Eduarda. Sabia notícias dela através do Dr. Machado, que havia se tornado pra ela mais que um advogado, quase um pai. O pai que ela nunca teve. Contou-me que ela agora estava trabalhando em uma livraria e a noite estudava numa escola estadual. Assegurou-me que tudo fora um arranjo seu com um amigo, dono de uma livraria no Leblon e que a “forçara” a se matricular numa escola e continuar seus estudos. Quando acabavam as aulas, ela voltava para o presídio, pra dormir, já que ainda tinha que obedecer o regime semiaberto. Se assim não fosse feito ela perderia o direito que lhe foi concedido. Sua conduta deveria ser sempre exemplar dali pra frente. Minha vontade de procurá-la era indescritível, mas eu não podia, não queria mais atrapalhar sua vida, agora que tudo estava dando certo pra ela. E também não queria mais confusão pra mim.Desde aquela época, meu relacionamento com meu pai ficou abalado. Minha mãe, apesar de ter me compreendido, cumpria com o seu papel de esposa fiel, ficando ao lado dele. Falávamo-nos raramente e todas as vezes que ela vinha ao Rio pra me visitar, era sozinha. Não raro, eu recebia cartas de Adelaide, que agora morava no interior do Rio na casa de uma velha tia de consideração das meninas. Parecia estar mais tranquila e sempre me perguntava por Eduarda. Dizia ter saudades de nos ver juntas.Numa tarde de abril, depois que saí do trabalho, resolvi esperar Eduarda na porta do colégio. Não iria falar com ela, apenas vê-la de longe. Não teria coragem de chegar perto. Fiquei esperando por 40 minutos dentro do carro, do outro lado da calçada. Meu coração pulsou acelerado quando a vi saindo pelo portão. Estava acompanhada de um rapaz que parecia ser muito íntimo dela, alisando sua cintura e colando os lábios na sua orelha de forma provocante. O ciúme me corroeu por dentro no mesmo segundo. Eu sabia que não tinha direito de senti-lo. Mesmo assim, ver aquilo me fazia sofrer imensamente. Era quase um prazer sádico vê-los se agarrando no ponto de ônibus e distribuindo bitocas como dois adolescentes apaixonados. Aquilo era o cúmulo pra mim. Depois que eles pegaram o ônibus fiquei mirando o espaço vazio que haviam deixado. Sentia-me uma adolescente boba. Apaixonada e rejeitada. Depois daquele dia não a procurei por 8 meses seguidos. Aquela ceninha de apaixonados ainda queimava na minha mente. De alguma forma eu me sentia traída.No natal fiquei sabendo que ela passou no primeiro ano com notas altas. E após esse primeiro ano, ela foi novamente avaliada e constatado que não representava perigo pra sociedade, poderia voltar a normalidade de sua vida. Com algumas exceções como não poder viajar sem avisar o paradeiro e ter que se apresentar de seis em seis meses pra ser avaliado o seu comportamento. Se ela não se metesse em problemas poderia gozar plenamente de sua liberdade. E eu rezava para que assim fosse. Finalmente a vida de Eduarda parecia pela primeira vez querer entrar nos eixos de verdade e eu acompanhava tudo a distância, como se zelando pelo seu bem-estar. Era importante pra mim. Soube que agora ela dividia um pequeno quarto com uma amiga, numa pensão no bairro da Lapa. Famosa pela boemia do lugar.Ao final de novembro voltei a procurá-la. Não aguentava mais fingir que não tinha saudades, que poderia superar. Não podia. Precisava vê-la de perto. Olhar em seus olhos novamente depois de tanto tempo. Nunca soube se ela sabia ou não que eu tinha retornado pro Rio. Numa tarde de quinta-feira fui a livraria onde trabalhava. Encontrei-a perto de uma grande estante ajudando um cliente a achar uma enciclopédia e fiquei observando-a de costas. Seus cabelos estavam amarrados em tranças debaixo do chapéu engraçado que usava. Estava bastante magra, diferente de quando a conheci, mas tão atraente e encantadora quanto. O uniforme que usava não ressaltava em nada suas curvas, mas mantinha graça natural do seu talhe feminino, antes vulgar, agora elegante. Aproximei-me com o coração na mão, pensando numa forma de chamar-lhe a atenção. Peguei o primeiro livro que vi na prateleira, logo atrás dela e...- Por favor, você poderia me ajudar...? – Ainda meio sem jeito.- Sim. Dê-me apenas um min... - Ela se virou com um meio sorriso que se congelou em seus lábios logo que me reconheceu.Os dois grandes livros que tinha nas mãos, agora trêmulas, desabaram no chão. E ela delicadamente se abaixou para apanhá-los.- Fique a vontade, eu espero... mais um pouco. – Sorri, o sorriso mais meigo que consegui arranjar.- C... claro. Eu... eu só vou... – Ela estava pálida e parecia desmaiar a qualquer momento.- Olha, eu não quero atrapalhar, mas eu tô com um pouquinho de pressa. Pode ser!? – Falou o homem a quem ela atendia, notando o evidente constrangimento entre nós.- Sim. – Virou-se pra mim – Pode me dar um minuto? Eu já atendo a senhora.Senhora!? Claro, esqueci que ela estava no trabalho e lá, eu era apenas mais um cliente entre tantos outros que passavam por ali. A vi se afastar com o homem para outra prateleira mais adiante e enquanto procurava o volume, me  olhava de cima embaixo disfarçadamente. Parecia não acreditar que eu pudesse estar ali na sua frente. Por outro lado eu também estava confusa, não sabia como reagir ou o que esperar dela. Melhor ainda, eu esperava alguma coisa dela? Enquanto ela terminava de atender o homem e levá-lo ao caixa eu me distraía analisando os diversos volumes científicos da prateleira em frente.- Não sabia que gostava de romances. Posso indicar outros, se quiser.Me assustei e virei em sua direção.- Como?- O livro... - Apontou pra minha mão – É sobre o encontro de um homem atormentado com um poder superior a ele. Deus.Olhei para o livro em minhas mãos. A cabana.- Não tenho tempo pra romances. Ainda mais dramáticos. – Estava ciente que a minha frase tinha saído com um duplo sentido.- Não é só drama. Fala sobre reencontrar velhos fantasmas que nos atormentam e acima de tudo... perdoar.Nossa conversa estava pendendo cada vez mais pra um possível desconforto entre nós duas. Resolvi mudar de assunto.- Não sabia que estava trabalhando aqui.- Não mesmo? Achei que meu advogado mantinha você informada de todos os meus passos. Não acredito que você tenha vindo aqui por coincidência. – Seus olhos brilhavam profundamente e se fixaram nos meus com ousadia. Não parecia ser mais a mesma menina que temia ser presa e condenada.- É, de fato, não foi coincidência. Eu precisava vê-la. – Empinei o nariz.- Por quê? – Rebateu num tom seco.- Precisamos conversar. Tenho muita coisa pra te dizer e queria saber mais um pouco sobre como você anda.- Não vejo necessidade disso. Eu estou ótima como pode ver.- Não quero te trazer problemas... – Vi em seus olhos uma ponta de mágoa - ...apenas quero lhe falar por uns minutos - Olhei ao redor. Suspirei – Sei lá, talvez pudéssemos tomar um café no bar da esquina, ou eu poderia vir buscá-la no final do expediente.- Não temos mais nada pra nos dizer.  – Relutou.- Olha, sei que está magoada comigo, com razão. Nem eu e nem você podemos voltar atrás em tudo que aconteceu, mas certamente podemos pôr uma pedra definitiva em cima desse assunto.- Não sei....- Por favor! Eu estou te pedindo. Me dá uma chance de consertar minha covardia. Ouça o que eu tenho pra te dizer.Ela me olhou séria durante longos segundos e finalmente soltou o ar preso em seus pulmões.- Não sei em que isso vai adiantar, mas... tudo bem. Aceito o café na esquina. Eu já ia tirar minha hora de almoço mesmo. Me dá só um minuto que eu já volto.Vi-a se retirar e uma ansiedade enorme invadiu minha alma. Sem me dar conta eu havia criado expectativas quanto a esse encontro. E agora que eu estava ali com ela tinha medo que as palavras me faltassem. Eu tinha medo de admitir pra mim mesma, apesar de todo o tempo que passou, que ela ainda mexia comigo com a mesma intensidade que antes.- Se importa se formos a outro lugar? - Perguntei animada.- Não posso me afastar muito. Daqui a pouco tenho que voltar.- Não se preocupe, eu te trago de volta na hora.No carro havia um silêncio incômodo de palavras que queriam ser ditas. Apenas o barulho do ar-condicionado quebrava o clima pesado. Coloquei um cd do Kenny G pra acalmar os nervos.- O que fez com o seu BMW? – Puxou assunto.- Vendi.- Por quê?- Achei que deveria ter um mais simples. Aquele me dava muita despesa e eu fiquei meia “pobre” depois que voltei de Londres. Além disso, chamava muita atenção.- Igual à dona... – Me olhou e deu um pequeno sorriso de canto de boca.- Você acha? - Sim. Era um carro sofisticado e você combinava perfeitamente com ele.Fingi que prestava atenção na direção e fiquei analisando seu perfil disfarçadamente. “Onde ela deixou a menina selvagem que era? Onde você está Eduarda? Quem você se tornou agora? Tão polida, tão calada...”- Pensei que fôssemos tomar só um café na esquina. Aonde vamos?- Achei que estivesse com fome, pela hora. – Olhei em sua direção. – Eu estou. Se incomoda se formos num restaurante a beira-mar? – Ela ficou calada. - Continuei. – Tem uma vista linda.- Por mim tanto faz. Estou sem fome. – Disse secamente.Chegamos em 5 minutos em frente ao Café do Forte, em Copacabana. Nos sentamos em uma mesa ao ar livre junto à mureta de proteção do Forte. Ela parecia entusiasmar-se mais com a vista do que com a companhia. Me senti na hora errada, no lugar certo. O garçom nos entregou o cardápio e percebi que ela demorava mais do que o necessário pra escolher.- O que vai pedir? – Inquiri.- Nada. Estou sem fome. Talvez, só um refrigerante.- O que foi Eduarda? Algo está te incomodando?- Eu tô dura, só isso. Ainda não recebi o pagamento do mês. – Baixou a cabeça mal-humorada.- Não se preocupe com isso. Eu te convidei, eu pago! Ok? Peça o que quiser.Pedi somente uma salada com salmão defumado e um refrigerante diet. Achei que por causa do meu nervosismo era só o que meu estômago suportaria, pelas voltas que dava. Eduarda decidiu provar os famosos pastéis de Belém e pediu mais dois sanduíches com Coca-Cola. Uma coisa que admirava nela é que sua fome raramente era afetada, independente do seu estado emocional. Diferente de mim. Dava prazer em vê-la saboreando a comida com abandono total. Era quase sensual vê-la comer.- Seu apetite é terrivelmente interessante.Ela levantou a cabeça e deixou o sanduíche no prato.- O grude da penitenciária é horrível. – Cruzou os braços em cima da mesa. – Acho que me acostumei aos maus modos. Tô te incomodando?- Não, em absoluto. É excitante vê-la comer. – Ops!Ela comprimiu os olhos e ficou me analisando.- Porque me trouxe aqui?- Para conversarmos sobre o que nos incomoda.- Nos incomoda ou te incomoda?- Por favor Eduarda! Eu imagino que o tempo que você esteve na prisão não foi um passeio no campo, mas...- Não foi. E você nunca vai ter a mínima idéia de como é e do que passei naquele inferno! Você nunca vai viver uma situação como essa porque você é certinha demais. Metódica demais. Perfeitinha demais... – Deu um suspiro cansado.As outras pessoas nas mesas ao lado começaram a nos observar com curiosidade, devido a exaltação dela.- Não vim aqui pra brigar.- Não estou brigando. Só falei o que penso.- E você pensa que sou assim tão alheia a tudo? Que vivo num mundo a parte e não me importo com o sofrimento das pessoas? Acha que sou assim tão insensível ao que você passou? Não faz idéia de como essa história toda me fez mal. Tão mal quanto fez a você. – Parei pra puxar o fôlego. – Você não imagina o quanto lutei por você...- Lutou por mim? Você virou as costas pra mim na frente de um tribunal inteiro. Quando eu mais precisava que me compreendesse.- Você não entendeu Eduarda...- E o que era pra ser entendido, hein!? Que eu era uma pedra no seu sapato e você queria se livrar de mim o mais rápido possível?- Não foi assim...- Não. Não foi. Foi pior. Não imagina como me senti quando você me negou na frente de todo mundo. Meses antes tinha dito que me amava. Como pôde?Olhei para o mar tranquilo e suspirei energicamente. Tentei pegar suas mãos por cima da mesa e ela recuou imediatamente como se tivesse tomado um choque de 220 volts.- Quero apagar todo mal entendido que houve entre a gente. Não quero que pense que fui omissa com você. Principalmente esse tempo todo que estive fora. Eu mantive contato todo o tempo com o seu advogado e fizemos o possível pra te tirar de lá. A prova é que você está sentada na minha frente nesse momento. Agora você tem uma vida nova... É gente de novo! Trabalha... estuda...- Quer uma medalha por isso?Levei as mãos no rosto já perdendo o pouco de paciência que tinha.- Não se trata de medalhas!- Se trata de que então? O que você ainda quer comigo? Não encontrou um divertimento a minha altura e quer relembrar os velhos tempos? – Seus olhos brilhavam de raiva e uma mágoa profunda enraizada até o âmago do seu ser.- Porque essa raiva toda de mim? – Perguntei calmamente.Ela passou a mão nervosamente pelos cabelos novamente compridos, que agora estavam soltos e escorriam pelos ombros como uma cascata marrom-chocolate. A cor dos seus cabelos a deixava ainda mais desejável do que já era. E seus olhos, apesar de distantes e aparentemente frios, emanavam um fogo intenso e contagioso que não me passou desapercebido. Me arrepiei. Tentei pensar em algo que não me lembrasse como era gostoso tocá-la. Como era bom beijá-la. Fechei os olhos por segundos e quando abri, me deparei com seus olhos, ainda brilhantes, nos meus. Ficamos em silêncio, analisando cada qual suas próprias emoções. Decidi quebrá-lo.- Porque me culpa tanto pelo que aconteceu? – Esperei sua resposta. – Eu só quis protegê-la!  - Sussurrei um pouco rouca de emoção. Não queria chorar na frente dela, mas também já estava exausta de me fazer de indiferente e forte.- O que importa isso tudo agora? Você não pode apagar o passado com palavras bonitas. – Virou o rosto em direção ao mar.Acompanhei seus olhos.- Se lembra daquelas pedras? – Ela olhou na direção que apontei e fiz que sim com a cabeça. – Acho que me apaixonei por você naquele dia de sol na praia.Ela me fitou intensamente. Seu olhar agora faiscava.- Talvez tenha sido por tê-la visto tão... frágil e senti-la tão só naquele dia. Quis protegê-la de qualquer mal que pudesse te acontecer. – Vi lágrimas escorrendo em seu rosto, silenciosas. – Eu não tinha certeza do que sentia. Era confuso, mas depois que li sua carta... tive certeza que eu era correspondida e que correspondia da mesma forma.Ela sorriu sarcástica e passou as costas da mão no rosto pra enxugar as lágrimas.- Eu não tinha ideia... do quanto era importante pra você... – Falei num fio de voz. - ...eu não sabia que tantas coisas poderiam surgir entre nós e...- parei.- E...?- Eu não sei como lidar com tudo isso! Confesso. Eu Fugi. Acovardei-me. Quando o certo era ter te procurado e resolvido logo essa situação.- Resolvido essa situação?? Eu era apenas um problema a mais pra você, não é? E resolveu me varrendo pra debaixo do tapete pra que ninguém soubesse que a “filhinha do papai”, a competentíssima Fernanda Villar se envolve na calada da noite com prostitutas criminosas. Nunca se esqueça que foi você quem me procurou. Não o contrário!Algumas pessoas que estavam nas mesas ao lado se levantaram e saíram, outras, por curiosidade, continuavam a assistir o bate-boca. Eu não me importava com eles. Não mais. Já era o suficiente pra mim a indiferença de papai comigo.- Eu não quis dizer isso. Não leve as coisas pra esse lado!- Essa conversa não vai nos levar a nada. – Se levantou. – Obrigado pelo almoço!- Espera! – Levantei num impulso e segurei o seu braço. – Sente-se e termine de comer ao menos.- Eu perdi a fome. - Olhou pra minha mão em seu braço e pra mim. Soltei-a. – E não se preocupe, não vou mais procurar você pra resolver OS MEUS PROBEMAS! Não tem mais que se sentir responsável por mim. Agradeço por ter pago minha defesa e prometo que devolverei logo que puder cada centavo que gastou comigo. – Disse com firmeza, depois se virou e saiu.Senti-me mal, relegada a segundo plano. Excluída como um objeto que já tinha perdido sua utilidade pro portador. Talvez como ela tivesse se sentido esse tempo todo em relação a mim. Paguei a conta rapidamente e a alcancei, procurando um ponto de ônibus numa das ruas transversais.- Eduarda. Espera!Ela continuou a andar, irritada com a minha presença.- Me deixa em paz, por favor! – Puxei seu braço pra parar.- É isso que você quer realmente?- É. É isso que quero!!!- Ok... Deixe-me ao menos levá-la de volta ao trabalho como prometi.- Não precisa. Eu pego um ônibus aqui.- Faço questão... – Ela bufou. – Por favor...Voltamos o caminho todo em silêncio. Um mal estar palpável entre nós. Coloquei um cd instrumental no dvd do carro. Minha visão periférica me deixava saber que ela observava disfarçadamente meu perfil. Paramos na esquina da rua da livraria. Ela tirou o cinto e agradeceu pela carona. Quando se virou pra abrir a porta, coloquei as mãos em sua perna. Minha última tentativa. “Tentativa de que? Pra que?” Senti seu estremecimento. Era a segunda vez que eu a tocava. Dessa vez ela não recuou e me olhou interrogativa, se acomodando novamente no banco do carona.- É isso? Adeus e pronto? - Perguntei olhando dentro dos seus olhos.Ela olhou pelo pára-brisa as pessoas que passavam.- É melhor assim... – Abriu a porta do carro. - Já dissemos tudo que tínhamos pra dizer. Quando puder pagá-la farei o dinheiro chegar as suas mãos. Adeus Fernanda! – Saiu do carro, resoluta, sem olhar pra trás. Vi pelo retrovisor ela se afastar a passos largos pra dentro da livraria.Dei a partida no carro pra uma nova vida. Exorcizei meus demônios.

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