Capítulo 24

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“EU SÓ ERREI QUANDO JUNTEI MINHA ALMA A SUA. O SOL NÃO PODE VIVER PERTO DA LUA.” Depois daquele dia, Henrique me ligava todos os dias pra saber se poderíamos conversar. Eu tentava ao máximo evitar esse momento. Mesmo assim, sempre que podia, ele insistia. No meio da semana doutor Machado me ligou e disse que havia conseguido não um indulto, mas uma saída temporária em favor de Eduarda, durante sete dias corridos a começar do dia 24 em diante. Exultei.Pensei que não poderia ficar fora de casa por todo esse tempo e combinei com Adelaide que só ficaria o dia de Natal com eles e depois só voltaria pra pegar Eduarda e levá-la de volta ao presídio. Mas, algo mais me movia. Eu tinha saudades das crianças e daquele jeito simples e humilde de Adelaide. No final das contas, talvez não fosse tão ruim.Liguei desmarcando meus compromissos pro resto da semana e me preparei pra viagem. No escritório também, o clima era de contagem regressiva. Liguei para meus pais avisando que não iria estar em casa para recebê-los e avisei Cecília e os demais que não iria passar o Natal em casa.- Aonde você vai ficar, posso saber? – Perguntava Ceci.- Vou passar o natal na casa de uma amiga. Por quê? – Disse olhando-a através dos óculos de leitura, voltando a ler os papéis em cima da mesa.- Você não tem amigos além de nós Fernanda. A quem quer enganar?- Você não sabe tudo sobre a minha vida Cecília.- Você que pensa! Eu sei muito bem que aquele advogado andou ligando pra você e também sei a quem ele defende. É ela de novo, não é?Fingi que não prestava atenção e continuei fazendo meu relatório. Ela bateu na mesa com força conseguindo minha atenção logo em seguida.- Eu sei muito bem que no final do ano esses vagabundos têm permissão pra sair da cadeia e eu aposto um braço meu que você vai se meter em um buraco qualquer com ela!- Cecília!- Você foi capaz de rejeitar um homem maravilhoso e apaixonado por uma biscateira sem-vergonha! Como pôde?Levantei irada.- EU NÃO ADMITO QUE VOCÊ SE META NA MINHA VIDA!! – Gritei fora de mim.Ela se calou e me olhou com os olhos arregalados.- O que eu faço ou deixo de fazer é problema meu!!! – Falei entre os dentes. – Ficou claro!?Nesse momento João Carlos abre a porta de supetão e entra sem cerimônias.- O que está acontecendo aqui gente? Dá pra escutar o grito de vocês no final do corredor. - Nada! Já terminamos, não é Cecília!? - Cruzei os braços e a fitei desafiante.- É... Com licença. Eu preciso voltar ao trabalho. – Falou num fio de voz e saiu batendo a porta.- O que foi que houve Fernanda? – Perguntou preocupado.- Um pequeno desentendimento. Já passou.- Me faça um favor, da próxima vez que você e ela quiserem resolver os seus desentendimentos o façam fora do escritório. Ok?-  Não se preocupe. Não vai mais se repetir.- Assim espero.  – Disse saindo.- João Carlos? – Ele voltou-se da porta.- Sim!?- Preciso ser dispensada do trabalho amanhã. Isso seria possível?- Você está com algum problema?- Não. Eu vou viajar no sábado pela manhã e ainda tenho umas coisas pra resolver.- Tudo bem. Só deixe o relatório pronto em cima da minha mesa antes de sair. Preciso apresentá-lo amanhã pro supervisor.Levantei e o abracei.- Por isso que te adoro!Ele me olhou balançando a cabeça num gesto de negativa e já ia sair pela porta quando parou.- Quem é o sortudo? – Risada cínica.- Como?- Sabemos que você recusou Henrique. Então, quem é que está por trás do brilho dos seus olhos mocinha!? Quem vai ter o prazer da sua bela companhia no natal?- Ninguém. Talvez o gato persa que eu estou namorando na loja de animais aqui perto.Ele riu debochado.- Você não vai me contar mesmo?- Não há nada para dizer.- Ok! Feliz natal Fernanda! E aproveite!Fechou a porta e eu o agradeci baixinho.Na sexta-feira fui levar o carro na concessionária para revisão e decidi passar na livraria pra ver se encontrava Eduarda por lá. Ela devia estar sabendo da permissão através do advogado, mas não fazia ideia de que quem a levaria seria eu. Entrei um pouco inquieta e a procurei pelo ambiente. Não a vi em canto nenhum e decidi perguntar por ela pra um jovem uniformizado.- Não sei lhe informar senhora. Talvez se a senhora fosse ao balcão e perguntasse...- Com licença. Eu sou o dono da livraria. Posso ajudá-la? – Interrompeu um senhor aparentando uns 60 anos, com um rosto risonho e modos educados. – Pode ir Samuel, eu a atendo.O rapaz se retirou desconfiado e pelo que pude perceber, insatisfeito.- Eu estou procurando uma garota que trabalha aqui com o senhor...- É da polícia?- N... não. Meu nome é Fernanda Villar. Sou amiga de Eduarda. – Estendi a mão. – Muito prazer.- Alberto Coimbra, ao seu dispor. – Apertou minha mão.- Então, o senhor sabe onde posso encontrá-la?- Infelizmente não, senhora. Eu a deixei sair mais cedo para resolver uns assuntos pessoais e não voltará hoje. A senhora quer lhe deixar algum recado?- Não. Não vai ser necessário. Muito obrigado.Saí da livraria com uma pulga atrás da orelha. Nada concreto, mas havia alguma coisa errada. O jeito que aquele homem me interpelou. O jeito que me olhava, como se me escondesse algo. Quando eu ia abrir a porta do carro, ouço uma voz me chamar. Virei-me, era o rapaz da livraria.- Senhora!? – veio bufando. – A senhora anda rápido... - colocou as mãos no joelho se abaixando.- O que quer? - Inquiri desconfiada retirando os óculos escuros.- Porque está atrás da menina? Ela fez alguma burrada?Olhei-o de cima embaixo.- Qual é o seu interesse nesse assunto? O que sabe sobre ela?- Muito mais que a senhora. O senhor Alberto mente quando diz que a viu hoje. Ela não tem vindo trabalhar há quase três meses.- O que está dizendo?- O que a senhora ouviu.- Porque ele mentiria sobre isso?- Pra protegê-la da polícia. É a preferida dele. – Ele viu dúvidas em meu olhar. – É isso mesmo que a senhora está pensando. Eles se encontraram durante muito tempo no escritório atrás da livraria e algumas vezes saíam juntos daqui.- O que mais sabe sobre isso? – Perguntei aflita.- Só o que lhe falei senhora, nada mais.- Qual é o seu interesse em tudo isso?- Antes dela eu era o preferido. Depois que ela chegou, eu não passo mais de um reles empregadinho pra limpar o chão.Eu entendi tudo em poucos segundos. Uma onda de rubor correu pelas minhas faces. Do que aquele moleque estava falando!? Ele poderia apenas estar querendo fazer intrigas por inveja. Ou, se fosse verdade... seria muito pior do que eu imaginei.- Por favor, senhora, não conte o que ouviu aqui e nem lhe diga que fui eu a falar. Ele me despediria na hora e eu preciso desse emprego.Depois, virou-se e voltou pra correndo pra livraria.Entrei no carro e liguei o ar-condicionado no máximo. Estava confusa e a minha cabeça rodava. Não poderia ser verdade o que eu estava pensando. Poderia!? Lembrei-me do dinheiro que Eduarda tinha arranjado pra me pagar. Estava com nojo de mim mesma por ter caído naquela conversa mole dela. Por ter acreditado na ingenuidade fingida de Eduarda. “Agora tudo faz sentido!” Voltei pra casa com a cabeça a mil e pro meu desgosto, reconheci o carro de Henrique estacionado do outro lado da calçada.Suspirei alto e quando subi, o encontrei parado na porta do apartamento com as mãos no bolso.- Podemos conversar? – Perguntou num tom jocoso.Não havia mais como fugir daquela conversa que prometia ser longa e sofrida. Não o queria magoar e por isso mesmo resolvi terminar tudo antes que fosse mais doloroso pros dois. Não o amava e não queria pautar o resto da minha vida em aparências. Entramos e ele sentou no sofá, desolado.- Quer beber alguma coisa? – Disse pegando pra mim um whisky duplo. Não costumava beber, mas a situação pedia.- Não, obrigado. Estou bem assim.Sentei na sua frente com o copo na mão e tomei um longo gole.- Fale. – Disse sem rodeios.- Tudo que eu tinha pra te falar eu disse naquele restaurante. Agora, quero saber o que você tem a me dizer sobre o meu pedido.- Acho que consegui ser bastante clara com você naquela noite Henrique. Não daria certo entre nós, nunca. Só você não enxerga isso.- Fale por você Fernanda, eu estava bem disposto a tentar, como ainda estou. Eu quero você!Levantei contrariada. Ele se levantou e me abraçou por trás.- Eu amo você! – Sussurrou no meu ouvido. Não quero te perder Fernanda. – Me virou de frente. – Eu estou disposto a esquecer de tudo que nos separa. Até mesmo ela.O olhei como se nunca o tivesse visto na minha vida. Surpresa completamente. O que ele sabia sobre ela? O que Cecília havia contado?- Ela... quem?- Você sabe a quem me refiro. Sei muito bem que anda se encontrando com ela.- Escute. A minha decisão independe de qualquer um. É minha! Eu decido o que fazer da minha vida e neste momento estou decidindo acabar tudo entre nós. – Me soltei dos seus braços, irrequieta.Ele baixou a cabeça, desolado. Parecia que tinham lhe dado um soco no estômago.- Eu não te amo Henrique. Não quero te fazer sofrer.- A decisão é minha, não sua. Não estou pedindo que me ame, só que se case comigo. É o suficiente. Sei que posso conquistá-la com o tempo.- Não posso... me perdoe!Vi lágrimas em seus olhos. Fui até o quarto e trouxe duas caixinhas. Uma era a da aliança de noivado que nunca cheguei a usar, outra era o colar que ele havia me dado antes daquele jantar.- Toma... – Estendi a primeira caixa. – Dê a quem te mereça. – Depois estendi a outra. – Devolva a joalheria. Não posso aceitar um sonho que que não é o meu.Ele pegou as caixas com as mãos trêmulas. Nessa altura, lágrimas também escorriam dos meus olhos e eu não conseguia contê-las.- É por causa dela, não é?Levantei a vista à altura de seus olhos. Encaramo-nos.- Não. É por mim mesma. - Suspirei alto. – Sinto muito...Ele fez um movimento de deboche com a boca, enquanto tentava conter o choro prendendo um soluço no peito, depois, levantou o dedo em minha direção.- Eu não vou desistir de você! Ouça o que eu vou te dizer... você vai ser minha, por sua própria vontade! - Deu passos apressados até a porta, enxugando o rosto com as costas da mão. – Até breve! - Me deu um último olhar mudo e saiu batendo a porta devagar.Uma parte de minha vida sentimental destroçada estava resolvida. Faltava a outra! Sem arrependimentos!Na manhã seguinte de um sábado de natal gelado, às 05h40min eu havia parado meu carro quase em frente ao presídio. Eu já havia falado com o advogado para deixar Eduarda a par de que, quem iria levá-la a Petrópolis seria eu. E apesar do meu desconforto com minha descoberta na livraria, não permiti naquele momento que aquela idéia me perturbasse por muito mais tempo. Iria deixar isso pra resolver num momento certo. Por enquanto, eu me limitaria a cumprir a promessa que havia feito a Adelaide. Aquela senhora simples nada tinha a ver com minhas diferenças com a “Du” dela.Exatamente as 06hs da manhã o portão se abre e algumas mulheres saem por ele. Afligi-me quando não a vi entre elas, mas um momento depois ela aparece por último com passos incertos e uma mochila grande nas costas. Quando avistou meu carro estancou seus passos. Eu saí do carro e fiquei fitando-a por cima do teto. Parecíamos travar uma batalha muda de desejos e vontades que queriam, mas não podiam vir a tona. Por fim, ela continuou se aproximando e enquanto o vento forte daquela manhã lambia seus cabelos eu tentava controlar as batidas do meu coração vagabundo.- Oi! – Exclamou num sussurro.- Oi. – Nos olhávamos como se nunca nos tivéssemos visto. Ambas se analisavam. – Entra no carro, vamos sair daqui. – Foi só o que eu consegui dizer, depois me calei completamente até ela puxar assunto já na Avenida Brasil.- Só soube que você iria me levar ontem.- E isso te incomodou. – Falei sem tirar os olhos da estrada.- Não sei... – Dessa vez olhei pra ela através dos óculos escuros.- Foi um pedido especial de Adelaide. Não podia deixar de atender. Além disso, eu também queria revê-la e as meninas e ver com meus próprios olhos o efeito do tratamento psicológico em Ariane. Então, não precisa se sentir culpada.- Deve ter desmarcado muitos compromissos. Seu “noivo” não deve ter gostado. – Notei seu desdém com a palavra noivo.Remexi-me desconfortável no assento. Troquei a marcha errada e o carro engasgou momentaneamente. Soltei um “droga”, nervosa. Não pronunciei mais nenhuma palavra até ela cortar o silêncio com a pergunta contundente.- Quando vocês vão se casar? – Perguntou como se por acaso com os braços pra fora da janela do carro.Continuei em silêncio sem saber se podia ou se queria dizer a verdade. Não saberia dizer por que não queria que ela soubesse do término do noivado.- Fernanda!?- O que?-Te fiz uma pergunta! – Contrariada. - Eu sei. - Então!?- Não vai haver casamento. Nós terminamos. - Você ou ele?- O que?- Qual de vocês terminou o noivado?- Qual a diferença?- Pra mim, muita. Responde.Um silêncio pairou entre nós.- Eu... Eu terminei.Curiosa, tentei visualizar de rabo de olho o efeito que minhas palavras haviam surtido nela. E pra meu espanto, vi um grande sorriso sarcástico e sem cerimônia em seus lábios. Parecia feliz com a informação. - Lamento por ele. Perdeu uma mulher maravilhosa...Colocou a mão esquerda sobre minha perna e ficou desenhando pequenos círculos invisíveis. Involuntariamente tremi, enquanto a pele do local se queimava em brasas. Tentei disfarçar e me lembrar de algo que fosse neutro. Veio-me a mente a estória que aquele rapaz me contou. Peguei sua mão num impulso e a retirei de minha perna, reprovando sua atitude.- Não faça isso! Eu estou dirigindo, pode ser perigoso.- Pra você ou pra mim? – Respondeu irônica. Parecia estar se divertindo me provocando.- Pra ambas! Essa estrada que estamos seguindo é muito perigosa, não acha!? – Retirei os óculos escuros jogando-os em cima do painel e encarando-a, visivelmente irritada.Ela percebeu o duplo sentido de minhas palavras e rebateu.- Não me importo de correr riscos com você! – Levantou a mão e começou a fazer um carinho gostoso em minha nuca por baixo dos cabelos.Mãos suaves. Convidativas. Quentes... Arrepiei-me. Disfarcei. Muito mal. Ela percebeu minha fragilidade e desafivelou o cinto, chegando perto dos meus ouvidos e sussurrando que sentiu saudades do meu corpo quente no dela.Vagabunda!!! Como ela pôde “me enganar” com o cara da livraria e depois vir me dizer palavras doces. Eu estava cega de raiva. De ciúmes!?“Ciúmes, eu!? De uma prostituta!? O que ela nunca iria deixar de ser. Sempre oferecendo seu corpo como paga por favores em seu benefício! Droga! Droga! Droga! Como fui cair na teia dessa viúva negra!!??”Já estávamos na rodovia Washington Luiz quando joguei o carro no acostamento e freei com violência. Saltei do veículo, não sei se irritada ou excitada demais e me sentei no capô tentando me acalmar. Não saberia distinguir no momento o que seria mais perigoso, o vácuo que sacudia o carro ao passar os caminhões a toda velocidade ou o toque de Midas daquela criatura.“Essa viagem vai ser complicada!”Senti seu olhar em  minhas costas, atrás daquele para-brisa escuro. Senti-me nua, como se ela soubesse tudo que me provocava e como eu não poderia resistir. Voltei pro carro, incomodada, e antes que ela dissesse alguma coisa levantei a mão.- Nem uma palavra, por favor!!!  – Virei no banco para encará-la de frente. - Antes de continuarmos vou deixar uma coisa bem claro Maria Eduarda. Eu aceitei trazê-la a pedido de Adelaide, por quem tenho grande consideração. Não estamos em absoluto numa viagem de lua-de-mel, portanto, não vou tolerar joguinhos de sedução comigo!  O que aconteceu naquele apartamento só diz respeito a nós duas e acho que somos suficientemente grandes pra entender a hora de parar...Ela fez menção de falar. A cortei e continuei.- ...então, não vamos estragar o natal dela e das crianças. Ok!? Vamos continuar essa viagem em paz!!!Apertei o cinto de segurança e engatei a marcha com mais força do que deveria. O carro reclamou dando um solavanco. Ela sorriu debochada. Coloquei meus óculos escuros de novo pra ela não perceber meu olhar de raiva em cima dela. Ou, melhor dizendo, de desejo reprimido. Um desejo forte e intenso de possuí-la com violência ali mesmo no meio daquele trânsito, só pra tirar a marra do seu sorriso. Uma vontade de castigá-la pela sua arrogância irresponsável.- Pretensiosa! – Disse mais pra mim do que pra ela.Ela se parecia muito bem com o seu signo, perigosa e traiçoeira e a qualquer momento poderia me picar com o seu ferrão e me matar com o seu veneno. Sorri azedo da idiotice do meu pensamento e continuamos o percurso mudas até quase a subida da serra.- Falta muito? Tô com fome. Podemos parar por aqui e comer alguma coisa? Não tomei café no presídio. – Colocou os pés em cima do painel e se esticou.-Tudo bem. A gente para logo ali na frente. Ainda tenho que comprar uns presentes pras crianças. Agora, você pode me fazer o favor de tirar os pés do painel, por favor!?- Sim senhora! – Fez sinal de continência.Paramos no alto da serra, numa padaria pitoresca que mais parecia uma lanchonete com cara de chalé, com duas torres muito altas em seu telhado e de frente pra um gramado muito bem cuidado que dava pra um abismo. Eduarda pediu uma infinidade de guloseimas e um milk-shake gelado eu pedi uns croissants e um cappuccino pra viagem. Ela insistiu em comer sentada no gramado, enquanto eu a observava de dentro do carro, com a porta aberta. Parecia uma menina quando se jogou na grama com os braços e as pernas esticadas. Ficou durante muito tempo assim, olhando pro céu, muda.Quando cheguei perto, vi lágrimas secas em seu rosto. Sentei ao seu lado na grama e ficamos alguns minutos quietas, olhando o abismo a nossa frente. Só ouvíamos o barulho do vento que era muito forte devido à mudança repentina do tempo.- Parece que vai chover Eduarda. Temos de ir andando. – Como vi que ela não respondeu, apertei sua mão que estava próxima a minha. Ela entrelaçou seus dedos nos meus.- Qual é o seu maior sonho Fernanda? – Me surpreendi com a pergunta fora de hora.Respirei fundo, ajeitando meus cabelos que o vento esvoaçava, com a outra mão livre.- Não sei. Acho que não tenho mais nenhum grande sonho. – Ela se levantou nos cotovelos, como que para prestar melhor atenção ao que eu dizia. – Eu tenho tudo o que eu me proponho a ter e já realizei várias outras que eu desejei.- Mas... você não tem nenhum desejo secreto!? Algo que queira muito e ainda não tem?Olhei pras nossas mãos entrelaçadas.- Não. Não mais...- Não sente falta de amor em sua vida? – Insistiu.Olhei diretamente em seus olhos.- Já tive experiências suficientes pra saber que ele não existe. As pessoas acreditam no que querem. Quanto a mim, estou bem assim.- Não acredita que pode existir um amor tão forte que ultrapasse todas as dificuldades pra se realizar?- Não! Acredito em confiança, respeito mútuo e segurança. Mais do que isso, é pedir muito... - Ela virou o rosto e ficou pensativa. - ...não acha!?- Não tenho muita experiência com o amor... Só me apaixonei uma vez na minha vida. Mas, não sabia que poderia doer tanto assim.   – Ficou uma lacuna silenciosa entre nós e eu decidi tomar a iniciativa.- Então,vamos!? Tá ficando tarde.“Ela quer me enlouquecer!?”No caminho, passamos por vários prédios que lembravam a arquitetura holandesa. Eduarda olhava tudo com uma curiosidade entusiasmada e por diversas vezes, distraída ou não, pegava na minha mão pra indicar sobre o que estava falando. Mas, não tocou mais no assunto de amor. Melhor assim.- Isso aqui é lindo! Nunca vi nada tão maravilhoso e verde... e esse cheiro de orvalho da manhã... hummm – Aspirou forte.- Você nunca saiu do Rio?- Não, nunca tive oportunidade. Mas, sempre quis conhecer outros lugares, outras culturas, outras línguas. Eu via muito nas revistas no salão de cabeleireiro da Martinha e ficava sonhando com um dia poder fazer isso.Sorri da simplicidade dos sonhos daquela menina-mulher ao meu lado. Pensei em quantos sonhos frustrados aquele coração jovem poderia carregar. Antes de conhecê-la eu achava que as pessoas que viviam em completa ignorância do mundo lá fora, não poderiam sentir falta do que não tinham, mas novamente ela me mostrou que eu estava enganada. Ela tinha sonhos tão frágeis quanto ela própria.“Coração de manteiga!”- Se quiser podemos dar uma volta antes de irmos pra casa de Adelaide. Ainda está cedo.Quando descíamos a serra, avistamos a nossa frente um hotel que mais parecia um imenso castelo medieval, com um lago de águas a sua frente, que em contraste com o gramado ao seu redor, pareciam de um verde-oliva brilhante. Eduarda se empolgou e pegou na minha mão com força.- Podemos parar?? Por favor!?Circundei o lago e paramos de frente pro hotel, que parecia estar bem cheio aquela época do ano. Hóspedes e malas entravam e saíam em um ritmo frenético.- Seria bom demais se tivéssemos uma câmera fotográfica pra guardar essa imagem maravilhosa. Olha pra isso.... – Apontou o lago a sua frente, com alguns cisnes nadando calmamente nele.Fui até o carro e voltei com uma máquina digital na mão.- Quem disse que não temos!? – Sorri triunfante, sendo recebida com um sorriso de orelha a orelha.Tiramos algumas fotos, inclusive de nós duas juntas, com o automático da câmera.- Pronta pra ir?- Uhum...Percebi sua emoção, parecia ter feito uma descoberta encantadora. Isso é o que eu mais adorava nela. Esse contraste da mulher selvagem e interesseira com a menina emotiva e curiosa.Paramos com o carro no início da rua Tereza e fomos procurar presentes pras crianças. Por diversas vezes peguei na mão de Eduarda pra andar por entre a multidão, que naquela época do ano aglomerava no lugar. Não percebi, mas andamos assim durante quase todo tempo e uma estranha confortabilidade pairava muda entre nós. Nossas mãos entrelaçadas aqueciam nossos corações no espírito natalino de doação.Compramos o que precisávamos e depois de 20 minutos paramos em frente ao endereço que me fora indicado. Era um sobrado, só que bem maior do que aqueles em que elas viviam no bairro da Saúde e bem melhor cuidado. Descemos com nossas bagagens, ela com sua inseparável mochila e eu com uma bolsa de viagens na mão. Toquei a campainha, enquanto reparava na grande porta pesada e no letreiro acima da minha cabeça, com letras bem simples “Pensão da Dona Emília”.  Alguns instantes se passaram até que a figura de uma menina se mostrou na porta e abriu um sorriso fulgurante pra nós. Era Ariane.- Mãee... A Du tá qui!!! – A menina agora falava em alto e bom som.Ela abriu passagem pra gente entrar enquanto eu perguntei se ela se lembrava de mim.- Lembro sim! Você é a moça do Rio que vivia atrás da tia Du. – Veio até mim e pra minha surpresa, me deu um beijo na bochecha.  - Vocês tão namorando?A pergunta me pegou desprevenida e eu olhei pra Eduarda, sem saber o que responder. Vi um sorriso malicioso nos seus lábios.- Vem cá meu amor!! – Eduarda abriu os braços oferecendo-os pra menina que ainda parecia estar interessada na minha resposta. A garota a abraçou entusiasmada. – Eu morri de saudades de vocês! Você tá tão grande... já uma mocinha!- Já tenho 13 anos tia Du!- Eu tô percebendo... Cadê sua mãe Nê?- Tá na cozinha com a bisa preparando a ceia. Vamu lá! – A puxou pela mão.Passamos por um cômodo que parecia ser um pequeno restaurante, com cadeiras empilhadas em cima de  algumas mesas e um balcão ao fundo, de onde se via uma pequena janela que deveria dar pra tal cozinha. Encontramos Adelaide em companhia de uma senhora idosa e duas moças, entre panelas grandes que exalavam um cheiro delicioso. Meu estômago roncou.- Hummm... já to morrendo de fome!!!! – Eduarda exclamou despertando a atenção das mulheres e da pequena (não tão pequena assim) Thaís, que se lambuzava com restos de massa de bolo de uma tigela em seu colo.A menina na mesma hora pulou do balcão que estava sentada e veio se jogar no colo de Eduarda, enquanto Adelaide enxugava as mãos no avental e vinha ao seu encontro abraçando as duas, emocionada. Não podendo conter o choro, sua voz saía embargada.- Minha filha... que saudades de você... deixa te olhar! – A jovem senhora exclamava com lágrimas nos olhos.Emocionei-me mais do que imaginei que poderia. Aquela cena me fez ter certeza que tudo tinha valido a pena até ali. Inclusive minha paixão por ela. Ela merecia aquilo. Merecia ser feliz e inconscientemente sabia que aquela era sua família. Aquela que ela nunca teve o prazer de ter realmente. A única coisa que tinha de valor no mundo. Naquele momento me esqueci de quem ela era e de toda a situação que nos envolvia. Apenas queria fazer parte do que poderia fazê-la feliz. Tive uma leve sensação de ter encontrado ali minha segunda família...

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