No dia seguinte, depois de comer (e de logo em seguida vomitar tudo no banheiro), Suna tentou me explicar a rotina do lugar. Falou que tínhamos três refeições por dia no refeitório em algum lugar do prédio subterrâneo, algumas horas de recreação depois de testes, exames e treinos. Era basicamente isso, éramos como ratinhos de laboratório. Perguntei sobre os treinos e a resposta me deixou bem nervosa:— Nos treinam para caçadas. – Sunahara disse aquilo como toda a calma do mundo.
— Como é? — perguntei, me inclinado na cadeira. — O que vamos caçar aqui?
Ela me fitou com aquele par de olhos sorridentes, levantou-se graciosamente e foi até uma das estantes carregadas com os livros. Me perguntei onde ela tinha conseguido tudo aquilo, nesse mundo em que precisávamos de cada árvore de pé para purificar o precioso ar dentro das Cúpulas, papel foi uma das muitas coisas que deixamos no passado.
Ela puxou um livro e o colocou cuidadosamente na minha frente para que eu pudesse ler o título na capa enrugada:
— Anatomia e peculiaridades Mórficas — li em voz alta.
— É isso que eles nos ensinam aqui. É que nos treinam para caçar. Mórficos — explicou Suna, voltando a se sentar. — Esses livros são todos meus. É claro que hoje a Cúpula tem material bem mais atualizado sobre os mórficos, mas eu gosto de ler sobre as antigas pesquisas.
Mórficos, repeti mentalmente, eles caçam mórficos?
Revezei meu olhar de espanto entre Suna e o livro velho e, com os dedos em pinça, o abri com muito cuidado. Parecia tão antigo que tive medo que virasse pó com o mais leve toque. Na contracapa haviam algumas anotações rabiscadas com uma caligrafia caótica que não consegui decifrar. Virei página após página, inundada de informações sobre mórficos. Parei em uma ilustração de um mórfico marinho de médio porte, sua boca cheia de dentes afiados, o couro avermelhado e as barbatanas como grandes facas o faziam parecer um dragão medieval.
— Isso não pode ser verdade — exclamei. — É... é loucura. Não podem nos mandar para além da Barreira. Vão nos matar!
— Na verdade isso nos mantém vivas. As caçadas nos tornam úteis para eles, já que não há qualquer avanço sobre nossa mutação viral. Se não pudermos caçar e trazer espécimes novos, por que nos manter vivas e arriscar a transmissão de um novo vírus mórfico?
Era impressionante como Suna fala de algo tão sério com tanta calma. Fechei o livro com mesmo cuidado com que o abri e fui até a estante. Ergui a cabeça para acompanhar a altura do móvel que ia quase até o teto branco. Nem dava para ver a parede do outro lado, não havia um espaço vazio. Era muita coisa.
— É tudo sobre mórficos? — perguntei passeando os olhos sobre as lombadas; umas rebuscadas e outra simples.
— Tem muita coisa sobre o vírus M, teorias de como ele possa ter surgido. Tem também uma coisa ou outra sobre a criação das Cúpulas e alguns romances água com açúcar.
— E como os conseguiu?
— Se você for bem uma caçada, o Diretor te recompensa. Eu sempre peço os livros antigos que eles têm em arquivo. Às vezes me deixam trazer coisas quando nos mandam para cidade antigas.
Cidades antigas. Ela se referia aos lugares onde não foi possível construir cúpulas. Lugares onde todos morreram. Tentei não pensar em morte naquele momento, precisava saber o máximo possível sobre aquela prisão.
— Esse tal Diretor, é o cara de terno prata?
— Não, esse aí é o Vladimir. Ele é como um cão de guarda. É raro ver o Diretor aqui, Mas Vladimir está sempre por perto. Acho que percebeu que ele é estranho.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...