A luz do sol bateu no meu rosto e me obrigou a despertar, porém, não abri os olhos, apenas me virei de bruços e falei com voz rouca de sono:— Fechar janelas... — A claridade continuou e como minha preguiça de levantar e fechá-las manualmente era muito grande, enfiei a cabeça debaixo do travesseiro e tentei voltar a dormir, mas alguém não deixou.
— Acorda, acorda. O quarto não vai obedecer a você, Anabel. Não está mais na sua mansão inteligente. — As cobertas foram puxadas de cima de mim.
O sono foi chutado para longe pela bota impiedosa da realidade. Meu cérebro religou e eu lembrei que estava presa em um prédio de pesquisas secretas, enterrado em algum lugar esquecido pelo resto do mundo. Levantei o travesseiro um pouco para ver Sunahara de pé ao lado da cama, sorridente com sua pele perfeita e firme graças ao vírus da eterna juventude que corria em suas veias. Eu grunhi quando vi que a luz do sol que tinha me acordado era, na verdade, as luzes no teto do quarto, imitando um amanhecer natural para nos fazer levantar.
— Me deixa — reclamei e escondi a cabeça sob o travesseiro novamente. — Não tenho nenhum compromisso hoje. Estou na cadeia.
— Claro que tem. O horário de restrição acabou há dez minutos e temos que tomar café da manhã — explicou ela, acostumada à rotina.
Apesar de não querer levantar para ir a lugar nenhum, meu estômago se pronunciou com ronco quando Suna falou em comida, e me fez perceber que estava morrendo de fome. Eu não havia comido nada desde o dia anterior, o estressante dia anterior.
— Tome um banho rápido. Temos que ir para o refeitório, vou te apresentar o resto do grupo.
Me livrei do travesseiro e sentei na cama de supetão. — Vamos comer no refeitório mesmo? — perguntei surpresa.
— Sim. Não achou que fossemos passar o resto da vida aqui dentro, achou?
Na verdade, foi exatamente isso o que tinha achado. Eu ainda não tinha entendido porquê destrancavam nossa sela e nos deixavam andar por aí. Quando perguntei a Suna por que eles nos davam essa liberdade, ela simplesmente respondeu que com os bloqueadores ligados, não representamos qualquer risco a ninguém. Além disso, obviamente, não tínhamos tanta liberdade assim.
— Pra você é fácil — retruquei emburrada — não tem nada espetando a sua cabeça.
— Eu não preciso de bloqueador. Não tenho nenhuma habilidade tão destrutiva como a sua.
Ignorei a garota convencida na minha frente e me arrastei para fora da cama. A fome me instigou a ficar de pé, somada também à curiosidade em saber quem eram as outras pobres almas que estavam na mesma situação que a minha.
Suna ficou me esperando na mesa, debruçada sobre um de seus preciosos livros de papel, enquanto eu tomava banho. Antes, fiquei observando a janela virtual ainda ligada. Mostrava o mesmo deserto de ontem à noite, só que agora o sol se levantava por atrás de uma colina arenosa, os primeiros raios anunciando o inicio de outro dia virtual naquele mundo falso de pixels em alta definição. Apesar disso fiquei feliz em ver alguma cor naquele cenário.
Quando entrei no banheiro, me senti em uma daquelas cabines de telefone inglesas antigas que mal cabiam uma pessoa. Tá, talvez eu esteja exagerando um pouco o banheiro era maior que isso, mas ainda assim muito pequeno. Senti falta do banheiro da minha casa, da minha banheira de água na temperatura certa, da música que tocava enquanto eu estava nela. Fazia tão pouco tempo e minha vida antiga já parecia ter terminado há um século. Eu vivia em outra planeta.
Olhei meu reflexo deplorável no espelho que, na verdade, era só uma chapa de metal cromado. É obvio que eles não colocariam vidro ao alcance de prisioneiras potencialmente suicidas. Bem, não importava, minha imagem no metal parecia a de um cadáver. Tinha olheiras que mais pareciam bolsas velhas e minha pele estava mais cansada que eu. Meu cabelo era um emaranhado estranho. Levantei uma mecha sobre minha orelha e analisei o bloqueador grudado na minha cabeça como um parasita robótico, o led verde sempre brilhando. A pele em volta estava vermelha e irritada e ainda me incomodava. Esperava que Suna estivesse certa quando disse que eu ia me acostumar com a sensação.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...