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Os dias seguintes foram cinzas. Era como se Daniele tivesse deixado um  vazio enorme naquele lugar. Mas não deixamos o luto nos fazer perder o foco em nosso objetivo de sair dali. Ainda mais depois do aviso de Vladimir que nossa liberdade não viria sem esforço. A notícia de que seríamos mandadas para muito longe logo em minha primeira caçada deixou Sunahara preocupada. Obviamente, quanto mais tempo passássemos lá fora, menores seriam nossas chances de voltar.

Só que nenhuma de nós tinha a intenção de voltar. Ou chegávamos ao tal refúgio ou morreríamos tentando.

Muita coisa mudou depois do acidente com Daniele. Não na rotina, mas no comportamento e no clima do lugar, principalmente em relação a Vladimir.

Ele se manteve afastado. Deu ordens aos guardas para não deixar nenhuma de nós sequer chegar perto da sala dele e eu raramente o via durante algum treinamento. Eu especulava que o motivo disso vinha do fato de que faltava um mês para a caçada e meu pai estava movendo as peças para a fuga. Vladimir não queria se envolver em conversinhas comigo e arriscar que o Diretor desconfiasse de algo. Por outro lado, ele pode ter se afastado porque percebeu que estava se envolvendo emocionalmente conosco. E quando parte do seu trabalho é ver pessoas morrendo, isso não é uma boa coisa.

Ninguém trocou a tela quebrada do projetor no meu quarto. Isso foi bom, a rachadura me lembrava todas as manhãs que meu tempo estava acabando, que a qualquer momento o Diretor poderia me colocar em um experimento desesperado que me mataria. Ele precisava de mim para conseguir seu dinheiro e isso me garantia um cuidado extra por parte dele. Mas eu não podia esquecer que também representava uma ameaça e ele não hesitaria em se livrar de mim se me tornasse perigosa demais para ser mantida presa. Então eu me obrigava a me manter na linha entre mostrar que minha habilidade era útil e poderosa, mas não tão poderosa a ponto de destruir tudo.

O mais surpreendente foi saber que eu era mesmo capaz de fazer isso, destruir tudo. Com mais e mais treinos, eu começava a entender do que era capaz. E quanto mais eu entendia isso, mais eu tomava cuidado para não deixar que percebessem o quanto destrutiva eu poderia ser.

Depois que a Dra. Arlene me liberou dos curativos nos braços, recebi um comunicado de Vladimir. Na verdade foi meramente um aviso pelo projetor da Sala de Dados. Dali a dois dias eu teria um “contato externo” como estava escrito em letras grandes. Essa atividade apareceu instantaneamente na minha grade de horários. Quando li a mensagem, percebi na hora o que aconteceria, mas minha relutância não me deixou acreditar e tive que ouvir da boca de Suna.

— Vão me levar lá pra fora? — perguntei e ela respondeu dando de ombros:

— Você precisa se acostumar à atmosfera externa antes da caçada.

— Mas e o vírus?

— O quê, está com medo de respirar o M? — Ela riu como se eu fosse uma boba. — Garota, seu DNA está carregado com vírus mórfico, o ar lá fora não vai te causar nenhum mal... — Suna parou e inclinou a cabeça, ponderando — Ahnn pelo menos não é vírus que vai te causar desconforto.

— Então o quê?

— Ainda será um ar que seu corpo não está acostumado. Você vai passar um pouco mal.

Aquilo não me deixou nem um pouco mais tranquila, mas pelo menos me ajudou a me preparar para o desafio. Além de que não pude evitar a ansiedade de saber que logo veria o sol de novo, sol de verdade. Eu veria o lado de fora. Talvez não fosse assim tão seguro, mas quando se está confinada por muito tempo, qualquer lugar é melhor que a prisão.

Na noite daquele dia os pesadelos voltaram. Eu vi Daniele sendo eletrocutada até seu corpo desaparecer por completo. O grito de agonia e a risada do Diretor ecoaram na minha cabeça mesmo depois que acordei encharcada de suor. Não consegui mais pregar os olhos e, como em outras noites de insónia, me levantei e fui ler alguma coisa da estante de Suna. Também não fui capaz de me concentrar nisso, só me restou ficar de frente para a janela virtual e assistir a lua se mover lentamente sob deserto por trás de uma placa de fibra trincada. Me senti dentro de um aquário, um peixinho dourado vendo o mundo através de um vidro e incapaz de nadar para além dele. Um peixinho prestes a saltar da água e torcer para cair no oceano.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora