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As naves se aproximavam rápido, em uma formação triangular de ataque. Eu já podia ver os canhões. Diferentemente do confronto na floresta, ali em cima eles tinham mira livre e não errariam os tiros. Mas eu não pretendia deixá-los atirar. O que eu estava prestes a fazer poderia me matar, porém, era também o único jeito de escapar. Lilyan tinha superado seus limites domando o pássaro titã, agora era minha vez.

— Anabel — Suna chamou, o vento forte zunia nos meus ouvidos, eu quase não pude ouvi-la. — Sei o que está pretendendo e imagino que saiba que seu cérebro pode não aguentar.

— Se eu não fizer isso estaremos todas mortas — retruquei enquanto reunia forças. — Eles não vão parar. Se deixarmos, vão nos seguir até no inferno. Talvez eu morra mesmo, Suna. Se isso acontecer, quero que vocês cheguem ao refúgio e vivam suas vidas em paz. Não deixem que tudo isso seja em vão. Promete?

— Você vai conseguir — foi tudo que ela disse. Era o suficiente para mim.

Forcei ao máximo aquela coisa estranha no meu cérebro. Tirei todo aquele poder e o concentrei nas naves. O segredo para fazer funcionar era imaginar uma esfera grande o suficiente para cobrir toda a frota do Diretor. Fiz isso com tanta vontade que vi o ar tremer. Ergui as mãos como que tentando agarrar a esfera imaginaria. Entre meus braços eu tinha todas aquelas coisinhas de metal que foram enviadas para nos matar. Pareciam tão pequenas agora. Então eu as apertei.

Foi diferente de todas as vezes que usei minha habilidade. Antes quando eu esmagava coisas, elas iam ao chão com uma força absurda. Dessa vez a força que atraiu aqueles veículos estava no centro do círculo. Todas elas foram puxadas para lá como se um corpo celeste supermassivo tivesse brotado do nada. O barulho também foi estranho, um bum abafado já que até o ar foi puxado. Meus ouvidos estalaram com isso. Até algumas árvores foram arrancadas e sugadas para o fenômeno, troncos gigantes que até mesmo as máquinas da Cúpula teriam dificuldade para levar ao chão.

No final o que sobrou foi uma bola compactada de aço e madeira flutuando sobre a floresta, que agora tinha uma nova clareira. Aquilo explodiu e uma luz avermelhada deu vida a um novo sol por instante, e então começou a cair, soltando pedaços flamejantes. Meus braços caíram junto, eu já não os sentia mais. Sentia apenas a dor cortando minha cabeça.

Sangue escorreu do meu nariz até meus lábios. Minha visão foi se fechando com uma sombra negra. Fui caindo de lado e teria despencado da ave se alguém não tivesse me segurado pelos ombros. Suna.

— Você conseguiu, patricinha... — ouvi a voz triste dela de lugar escuro e muito distante.

°   °   °

Eu não acordei, não totalmente. De olhos fechados ouvi vozes sussurrando. Não.  não estavam sussurrando, era eu que não as ouvia direito.

— A situação é grave — alguém disse. Uma mulher. — Ela destruiu uma frota inteira. Chamou mais atenção do que deveria. Virão atrás de nós de, Albert.

— Isso importa agora? — outra voz retrucou. — Acabou, a Pirâmide caiu.

— Corte a cabeça da hidra e duas crescem no lugar. Já ouviu essa frase?

Eu conhecia aquela voz feminina de tom irritadiço e também a outra masculina que discutia. Eram nossos contatos do ponto de extração. Conseguimos chegar?

Tentei chamar por alguém, mas só o que consegui foi gemer de dor. Minha cabeça latejava a cada pensamento, assim como o latejar da minha panturrilha perfurada.

Alguém tocou minha cabeça. Uma mão enluvada. Na escuridão que me cercava, lembrei da mesa de cirurgia que do Dr. Pontes. Me debati aterrorizada, guiada pelo medo primitivo de voltar para aquele lugar.

Dor. Minha cabeça queria explodir.

— Calma, Anabel. — Essa voz era desconhecida. — Está segura agora.

Não acreditei.

— Fica calma, Anabel. — Era Suna.

Finalmente tive forças para abrir os olhos. Eu estava deitada em uma maca, presa de peito para cima. Olhei parte de rostos que me cercava. Um deles era o de um rapaz de feições indianas com uniforme verde cheio de bolsos. Ele estava de luvas brancas, salpicadas de sangue. O outro rosto era de Suna, suja de cinzas e suor, o olhar violeta entristecido.

— S-Sunahara... — consegui gaguejar. — É aqui? Esse é o lugar?

— Esse é o ponto de extração. Conseguimos chegar a tempo graças ao titã — ela respondeu. — Vamos decolar daqui a pouco. Rajiv estava cuidando da sua perna.

— Você vai conseguir andar normalmente em poucas semanas — o rapaz disse com sotaque forte.

— Onde está Lily? — indaguei à Suna. — Ela está bem?

— Com muita dor de cabeça, mas bem. — Ela apontou para um canto da nave. Lilyan estava sentada no chão frio de metal, olhando para o nada. — Ela quer ficar sozinha.

Em outra maca, do lado oposto ao meu, outro corpo estava coberto por um lençol verde. Deise. Suna viu meus olhos se enxerem de lágrimas e virou meu rosto para que olhasse lá para fora.

Aquela era uma nave de carga, percebi logo que vi a enorme rampa com degraus baixada. Lá fora o sol descia lentamente atrás das árvores enormes. Vi o chão de pedra refletir a luz alaranjada do fim da tarde. Estávamos em algum lugar alto, no topo de uma rocha.

Na beirada da rocha estavam de pé as duas pessoas que ouvi discutindo. Ambos de uniforme militar de cores escuras. A garota com um longo rabo de cavalo encaracolado tinha um fuzil enorme pendurado nas costas. O rapaz não era tão alto e portava apenas uma pistola na cintura. Ambos vieram até mim quando me viram acorda.

— Sinto muito por sua amiga — ele disse com pesar. A garota apenas me encarou. — Meu nome Albert. Essa aqui é a Miranda. O carinha que cuidou da sua perna é o Rajiv.

— Vão nos tirar daqui? — perguntei.

— Tem ideia do que fez, garota? — Miranda deu um passo à frente. Ela parecia querer me esganar. — Sabe o que provocou?

— Eles iam nos matar! — Suna ficou de pé e a empurrou. — Foi o único jeito.

— Miranda, por favor, controle-se. — Albert se meteu entre as duas. — Vá Subir a rampa. Vamos decolar logo.

Eu teria saltado sobre aquela vaca se tivesse forças, mas meus olhos ameaçavam se fechar de novo. Ela saiu batendo pé até um botão que fez  a rampa começar a ranger enquanto se erguia lentamente. Suna voltou a se sentar ao meu lado.

— Qual o problema dessa garota? — perguntei.

— Não se preocupe com isso agora — Suna desconversou. — Descanse.

— Vai ficar tudo bem, moça — disse Albert e subiu a escada para a cabine.

Miranda sentou-se do outro lado, colou a arma sobre a perna e travou os cintos de segurança. O jovem médico, Rajiv, esticou tiras sobre minhas pernas e braços, me prendendo ainda mais na maca.

— Essas naves velhas de carga sacodem muito — ele disse sorrindo. Com esse mesmo sorriso, pegou uma caixa prateada e tirou uma seringa carregada. — Vou te dar algo para a dor de cabeça, você vai dormir um pouco.

Me encolhi aterrorizada, teria surtado se não estivesse tão fraca. A agulha perfurou meu braço ao mesmo tempo que os motores da nave foram ligados, fazendo tudo vibrar. Por pequenas janelas vi a floresta se afastando até sobrar apenas o céu laranja. Apaguei aos poucos, inquieta, com medo dos pesadelos que se preparavam para me carregar para longe.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora