Passei metade da noite entre cochilos carregados de sonhos vívidos sem sentido, ainda resultado dos resquícios do sedativo no meu sangue. A outra metade passei de olhos bem abertos, pensando no meu pai. No que ele fazia trabalhando para as mesmas pessoas que mantinham esse lugar funcionando. Eu sabia que era o trabalho dele manter a Barreira erguida e funcionando, mas nunca imaginei que isso dependia de atitudes tão inescrupulosas. E pensar que isso acontecia na maioria das Cúpulas pelo mundo só me deixava mais irritada e com medo.
Quando amanheceu, como já estava virando rotina, me levantei abatida pela noite mal-dormida. Suna já estava de pé, organizando alguns de seus raríssimos livros em sua estante enfeitada. Me senti em outro planeta. Para mim a adaptação era difícil, mas Suna crescera em laboratórios, a vida que ela conhecia era essa.
— Bom dia, Anabel — cantarolou ela. — Como está?
— No momento estou te odiando por está tão disposta tão cedo — resmunguei.
— Quer trocar sua mutação viral pela minha? — sorriu ela. — Eu adoraria esmagar alguns drones.
— Até que não seria uma má ideia ser praticamente imortal. — Ela só sorriu pra mim.
Tomei um banho rápido com o estômago doendo de fome. Prometi a mim mesma que roubaria alguma coisa a mais do refeitório, nem que fosse uma maçã para comer escondida pelos corredores. Depois de me trocar apliquei os adesivos anti-inflamatórios que a Dra. Arlene receitou e ficamos esperando a porta destravar e nos liberar para o café.
— No que está pensando? — Suna quis saber, percebendo meu silêncio.
— Em ontem — confessei. — É que Vladimir me falou algo muito estranho enquanto colocava a venda. — Aquilo não me saia da cabeça, o aviso dele, o conselho ou sei lá o que ele quis dizer.
— O que ele disse?
— Não sei se era uma provocação. Ele disse para eu mostrar potencial. Era como se ele quisesse que eu deixasse os líderes da Cúpula impressionados ou assustados... ou os dois.
— Vladimir é bem estranho às vezes — disse Suna, pensativa. — Ele já foi como nós, serviu de cobaia por anos o mandaram para caçadas que quase o mataram. Daí o Diretor percebeu que a habilidade dele seria mais útil para caçar pessoas que mórficos e o tornou administrador da Pirâmide. Como ele conseguiu a confiança para isso eu não sei.
— Você está sendo gentil quando diz que ele só é estranho às vezes — bufei. — Aquele cara me dá arrepios. Nem nos meus próprios pensamentos posso me proteger. Eu devia ter esmagado Vladimir ao invés daqueles drones.
A voz feminina ecoou pelo quarto, avisando que o horário de restrição havia acabado e a trava da porta liberou nossa saída.
— Já era hora! — comemorei e praticamente corri até a saída, mas minha alegria morreu quando vi Vladimir acompanhado de dois guardas no corredor, as armas que eles seguravam eram bem diferentes das que eu já tinha visto ali, eram maiores, com balas de verdade.
— Bom dia, lindinha. Estavam falando de mim? Que tal darmos um passeio? — Os guardas se posicionaram dos meus dois lados, como se fossem me espremer entre eles com seus braços enormes. Apesar do tom amistoso de Vladimir, estava bem claro que aquilo não era um pedido.
◎ ◎ ◎
— Sente-se onde quiser — disse Vladimir quando chegamos em seu escritório. Era amplo e bem iluminado e no fundo, atrás de uma mesa feita de madeira falsa, estendia-se uma janela virtual mostrando uma cadeia de montanhas vista do alto, um mar de nuvens passeava vagarosamente sendo levado pelo vento. Vladimir trancou a porta assim que entrei e os guardas ficaram do lado fora como duas sentinelas emburradas. Sentei-me na única cadeira que havia ali além da poltrona atrás da elegante mesa. Suspirei.
— Vai me levar para o topo? — perguntei apertando meus dedos suados.
— Como é? — Ele riu. — Sunahara te falou sobre o andar 10? Não se preocupe, não vai conhecer aquele lugar hoje, embora você tenha passado bem perto de ganhar uma passagem só de ia para lá com seu showzinho de ontem.
Respirei um pouco mais aliviada, e me esforcei para não parecer mais assustada do que já estava.
— Então qual o motivo dos seus gigantes armados terem me trazido aqui?
— O aumento da segurança foi uma exigência do Diretor. — Vladimir juntou as mãos em frente ao queixo e continuou falando com um olhar concentrado focado em mim. — Ele considera você um risco muito grande para todos nesse prédio.
— Que risco eu posso causar com esse bloqueador na minha cabeça?
— Anabel, você sabe o que foi aquilo que fez ontem? Quero dizer, sabe exatamente o que você faz?
Dei de ombros. Ele pegou um projetor sobre a mesa e me entregou. A tela transparente mostrava uma sequência de linhas quadriculadas planas como um tapete.
— Aperte o play — ordenou.
Com um péssimo pressentimento iniciei a reprodução do vídeo. Só que não era um vídeo, era algum tipo de representação gráfica de um fenômeno. As linhas começaram a vibrar em volta de uma esfera na frente de uma silhueta borrada pelo efeito trepidante da imagem. Quando tudo parou de tremer, pude ver de quem era a silhueta.
— S-Sou eu... — balbuciei. A vibração voltou quando a outra esfera foi posta diante de mim, flutuando alto, nesse momento as linhas quadriculadas se expandiram à minha volta e criaram montanhas finas apontando para cima. O momento em que esmaguei os drones chegou e a vibração se inverteu, esticando-se para baixo e formando um fosso profundo na minha frente. Logo me vi caindo de joelhos quando reativaram o bloqueador e as linhas voltaram a ficar planas e calmas novamente.
— O que é isso? — perguntei. Minhas mãos tremiam.
— Isso é uma representação gráfica do que os sensores da sala capturaram. Monitoramos toda sua exibição com eles. — Vladimir tomou o projetor de mim e se recostou vagarosamente na poltrona. — Eles captam mudanças em nível atômico. Essas coisas eram usadas em pesquisas para desenvolvimento de motores moleculares pelas agências espaciais. Coisa antiga, antes do vírus aparecer, quando ainda podíamos nos preocupar com trivialidades como exploração espacial.
— Está dizendo que eu consigo criar oscilações atômicas?
— Não foi bem isso que os cientistas disseram. O vírus M os surpreendeu. De alguma forma, ele conseguiu modificar seu cérebro para interagir na densidade dos objetos, pessoas... ou do ambiente. Segundo eles você poderia fazer um bloco de concreto pesar tanto quanto um fio de cabelo, ou vise e versa. Como você faz isso sem, aparentemente, alterar a massa das coisas, eles ainda não descobriram e provavelmente nem vão. — Ele se inclinou sobre a mesa para me olhar nos olhos. — Vê agora como você é perigosa? Na reunião de ontem, depois do seu ataque de raiva, foi discutido o seu descarte imediato.
— Meu ataque de raiva?! — me exaltei. — Você me mandou impressioná-los. Você... — parei de falar. Vladimir me encarava sorrindo, enquanto brincava com o projetor.
— Exatamente, eu. — Ele se levantou e deixou a janela virtual completamente visível. Fiquei tonta só de ver a altura tão realista de perto. — Sabia que eles te descartariam quando vissem que você brinca com a gravidade como bem entende. Eles viram o vídeo da câmera de segurança que filmou você esmagando aquele riquinho na festa e planejavam matar você de verdade, Anabel. Acha que deixariam uma adolescente mimada andar por aí com esse tipo de poder? — Ele deu a volta na minha cadeira e colocou as mãos nos meus ombros. — Foi seu pai quem os convenceu a trazer você até aqui para pesquisa, ele deu a uma chance para você continuar viva. Sabe por que pedi para você exagerar ontem? Porque se eles vissem que o seu potencial pode ser bem maior que apenas levitar esferas de olhos vendados, manteriam você viva por mais tempo para usar você contra os titãs.
Meu pai quis que me deixassem viver? Minha cabeça era um turbilhão de pensamentos que nem mesmo Vladimir saberia como lê-los.
Vladimir deu tapinhas no meu ombro, seus dedos estavam gelados.
— Garota, você não sabe o que se passa aqui. Não importa o que façam, o M não pode ser vencido. Ele é o castigo que o planeta lançou sobre a humanidade. Mas, pessoas como eu, você, Sunahara, Lilyan... nós somos especiais. Fomos escolhidos para continuar a evolução humana. Seu pai é um dos poucos que entende e aceita isso.
— Por que está me contando isso? — perguntei sem expressão, estava completamente anestesiada.
— Você vai entender na hora certa, apressadinha. — Ele voltou para seu lugar à minha frente. — Por enquanto só preciso que você se esforce para ser a arma para que o Diretor quer.
— Não vou deixar que me usem!
— Acho bom você mudar de ideia, lindinha, porque no momento que você deixar de ser um útil, você vira uma ameaça, e então... — ele se deteve e eu engoli em seco. — Coisas que não funcionam aqui dentro são jogadas fora, lembre-se disso.
Ele tinha razão, se tudo aquilo fosse verdade, se eu tinha mesmo todo aquele poder, eu era uma ameaça. Minhas mãos gelaram e o coração começou a palpitar, pensei que fosse desmaiar de nervosismo e a fome que sentia não ajudava em nada, mas respirei fundo várias vezes, como havia aprendido nas aulas de yoga.
— Merda, merda, merda... — xinguei baixinho. Isso não tinha nada a ver com yoga.
— Calma, poderia ser pior. — Vladimir se divertia com meu estado. — Você poderia estar a caminho do andar 10 agora. — Ele riu de novo e eu desejei com todas as forças que aquela janela fosse real para que eu pudesse jogá-lo dali. — Agora vá comer alguma coisa e aproveitar suas aulas. Vamos tentar ensiná-la a usar essa cabecinha perigosa da maneira correta. E não, você não vai me atirar de nenhuma janela.
— Quer sair da minha cabeça?! — protestei, batendo o pé até a porta.
— Eu preciso mesmo, você pensa tanta coisa violenta que vou acabar tendo pesadelos, sua psicopata! — gritou ele antes que eu saísse. Ainda pude ouvir sua risada debochada no corredor.
— Idiota...
◎ ◎ ◎
Voltei sozinha para o refeitório, sem escolta armada, mas vi o dobro de drones de vigilância zumbindo sobre as mesas, me encarando com seus olhos frios. Não havia mais ninguém lá, as garotas já tinham ido para as tais aulas.
Sentei-me cabisbaixa e pensativa à mesa, diante de um potinho de plástico com meu nome escrito. Meu café da manhã, literalmente uma marmita. Tirei a tampa e dei um suspiro pesado, quase chorando. Era a gosma nojenta que Suna comentara na noite anterior, meu castigo. Encarei a vitrine de comida e a máquina de sucos, ambas estavam desligadas. Nada de comida descente para mim, não importava o quanto eu podia ser útil ou perigosa, tinha feito besteira e estava recebendo minha punição.
— Vivendo e aprendendo, Anabel — murmurei para mim mesma, preparando o garfo. Cutuquei a gosma um pouco, esperando ver algo se mexer. Minha fome era tanta que enchi o garfo e o levei à boca com vontade, me arrependi amargamente, literalmente. — Ohh, está frio... — gemi, fazendo careta com boca aberta, sem coragem de engolir aquela coisa colada na minha língua.
Um drone flutuava na minha frente filmando meu rosto de uma altura segura. Apostaria qualquer coisa como Vladimir estava rindo de mim no conforto de sua sala, me vendo pelo projetor. Fechei a boca e engoli a ração, não daria aquela satisfação a ele. Vai se foder!, pensei com todas as minhas forças, talvez ele pudesse ler minha mente à distancia, pelo vídeo ou seja como lá como a habilidade dele funcionasse.
Depois que terminei de me torturar engolindo meleca, um dos guardas me entregou um projetor pequeno e mandou seguir para o andar 3. Apenas isso. Assim que liguei o aparelho meu nome surgiu na tela transparente com a foto horrível da minha carteira de motorista do lado. Um documento abriu-se sozinho e mostrou uma planilha com horários e lugares onde eu deveria estar. Meu próximo compromisso era na Sala de Dados.
Olhei em volta procurando pelo guarda, mas ele já havia sumido. Sem escolta de novo.
— Muito bem — falei com um suspiro. — Hora de ir pra aula.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...