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Aquela foi outra noite mal dormida. Outra noite em que eu só consegui ficar rolando na cama enquanto assistia o tempo passar no deserto virtual. Minha cabeça estava a mil, eu repassava toda minha vida, buscando saber como meu pai garantiu que não descobrissem que eu carregava uma arma viral na minha cabeça.

Lembrei de uma vez que me cortei na cozinha. Eu tinha onze anos e tinha deixado um copo cair quando fui assaltar a geladeira em plena madrugada. Uma das minhas babas veio correndo e quando me viu sangrando, foi buscar luvas e máscara química antes de sequer chegar perto de mim para fazer o curativo. Eu tinha perguntado pra que tudo aquilo, era apenas um corte pequeno.

— Ordens do seu pai — ela dissera sem qualquer reação. Obviamente minhas babás não sabiam da minha condição, mas meu pai havia tomado providências mínimas contra uma possível contaminação. Todo aquele tempo que passei isolada, era uma espécie de quarentena de longo prazo para me manter segura. Aquela casa tecnológica, agora era obvio, tinha sido outro cuidado dele. Morar sozinha diminuía as chances de eu fazer besteira com as outras pessoas em uma república.

Sem sono, decidi ler um pouco e me distrair. O quarto estava escuro, iluminado apenas pela luz fraca da lua no céu do deserto virtual. Me levantei devagar para não acordar Sunahara, que dormia esparramada no colchão de cima, o cabelo liso cobrindo parte do rosto.

Apanhei um livro de capa dura com o título em português: Mutações Virais em Humanos. Era um apanhado de pesquisas laboratoriais sobre o vírus M, coisa bem antiga pra estar em impresso em papel. Não importava, parecia ser muito chato e me faria dormir rapidinho. Puxei uma cadeira para perto da janela virtual e abri o exemplar em uma página qualquer. Era uma pesquisa sobre o vírus mórfico concentrado nos olhos de um portador. A maior parte do texto apenas especulava sobre o motivo do vírus se aglutinar especificamente em um único órgão e modificá-lo, porém, um trecho me chamou atenção:

“O individuo apresentou mudança na pigmentação da íris, resultado do aumento de captação de luz mesmo em ambientes escuros. Houve também, aumento nos reflexos, o portador reage 63% mais rápido que uma pessoa não infectada...”

Os olhos de Suna correspondiam à descrição, eram violetas. Então ela também tinha uma alta carga viral nos olhos, ou seja, ela enxergava melhor que qualquer um naquele lugar. Finalmente entendi por que ela guardava tantos livros sobre o vírus. Não era só para se entreter. Ela queria entender o que aconteceu com seu corpo. Queria entender a si mesma. Era o que eu deveria estar fazendo: conhecendo minha habilidade. Meus limites.

Passei a folear o livro em busca de alguma pesquisa sobre o vírus M relacionado com alteração em campos gravitacionais. Reavirei as páginas três vezes, mas não achei nada. O volume era antigo, talvez, muito antes de eu ou minha mãe termos nascido. Será que houveram outras pessoas capazes de fazer o que eu faço? Se minha mãe passou isso para mim geneticamente, é possível que tenha acontecido com mais alguém. Um tio ou uma prima distante. Isso me deu mais ânimo para procurar em outros livros, então voltei para a estante e empilhei na mesa alguns volumes em português e inglês, já que eu não entenderia nada dos demais.

Passei a madrugada lendo sobre mutações virais das mais variadas. As mais comuns eram as que aconteciam no cérebro. Pelo que entendi, o vírus M tinha uma atração especial pelos neurônios humanos e os modificava de maneiras inexplicáveis, como a captação ou alteração de onde ondas cerebrais como acontecia com Vladimir e Lilyan, até a clássica telecinese. Mas o M também se misturava no sangue, nos músculos, nos ossos, até no cabelo, e os transformava de formas diferentes. Era tanta coisa. Infelizmente não encontrei qualquer menção de algo parecido com o que eu faço.

Em algum momento o sono me nocauteou e eu acordei com uma mão sacudindo meu ombro de leve.

— Anabel. Anabel, acorda, você dormiu na mesa. — Levantei a cabeça e uma dor percorreu meu pescoço até a base da minha coluna.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora