Hesitei em colocar o capacete e responder ao chamado. A voz não era do meu pai, nem de Vladimir. E se fosse alguém da Pirâmide que conseguira nos rastrear? Com o sangue pulsando no meu ouvido, tomei coragem e encaixei minha cabeça no aparelho.
— Alô? — respondi. A voz jovial chiou novamente:
— Ora, finalmente! Anabel?
O sinal estava sendo recebido por Suna e Deise também e ambas acompanharam a transmissão. O capacete de Lily tinha sido danificado na queda da nave, então ela teve que colar o ouvido na cabeça de Deise para escutar alguma coisa.
— Quem é? — devolvi a pergunta, não ia revelar nada sem saber com quem estava falando.
— Seu contanto de apoio. — O chiado diminuíra um pouco e eu pude ter certeza que a voz era mesmo de um rapaz. — Seu pai não falou que entraríamos em contato?
— Sim, ele falou. Mas qual é seu nome?
— Desculpe, não posso falar meu nome nesse canal. Suas amigas estão com você?
Me virei para encarar os rostos expectantes a meu lado. Lily estava tão perto de Deise que sua respiração embaçava o visor do capacete. Ela me instigou a responder com gestos frenéticos com as mãos
— Estão.
— Vivas?
— Claro!
— Que bom. É que localizei um titã alado perto nessa região mais cedo. Temi que algo de ruim tivesse acontecido.
— Sabemos do titã e estamos bem. Agora pode dizer o que devemos fazer? — Eu estava com medo. Nem sabia com quem estava falando, só queria que aquilo acabasse, que chegássemos logo nesse tal refúgio para dar um jeito de falar com meu pai.
— Calma — a voz era firme e controlada de alguém que sabia o que estava fazendo. — O objetivo desse contato é apenas para saber a condição de vocês e informar sobre a movimentação das naves da Cúpula. Eles estão procurando por vocês, cerca de sete grupos, com drones. Se mantiveram na área da queda, mas amanhã, provavelmente, vão se estender para mais além. Terão que viajar mais rápido.
— Como sabe tudo isso?
— Meu trabalho é saber essas coisas, se quiser, pode me chamar de Olho no Céu
Era uma piada? Eu ia retrucar quando ouvir outra voz no fundo, reclamando do tempo ou algo assim. Soou distante, mas parecia ser de uma mulher.
— Meu tempo está acabando — ele continuou — não posso manter esse sinal no ar ou seremos detectados. Mais uma dica: vocês poderão encontrar alguns mórficos bem chatos, mas passar por eles não deve ser problema par você, não é? Ouvi dizer que sua habilidade é muito forte. Bom, Apressem-se, vocês têm dois dias para chegar ao ponto de extração estaremos esperando.
— Espera, como assim mórficos? Que tipo de coisa vamos ter que enfrentar?
Um suspiro cansado e depois a voz feminina surgiu de novo, mais insistente. Quem quer que estivesse falando, tinha se aproximado mais e eu pude distinguir algumas palavras:
— ...demorando demais. Desligue isso, elas vão ter que se virar. — A voz era autoritária, mas jovem.
— Ouça, Anabel — o tal Olho no Céu voltou a falar — tudo o que precisa fazer é seguir o mapa. Posso te assegurar que o lugar que seu pai construiu é seguro. Um lar para nós. Apenas siga as coordenadas e cheguem vivas ao ponto de extração. Acredite, se eu pudesse iria até vocês agora mesmo, mas não posso. Voltarei a contatá-las para atualizar sobre o movimento dos grupos de busca. Desligando...
— Mas eu... — O chiado me interrompeu e então silêncio. Tirei o capacete para ficar encarnado o visor refletindo a luz da fogueira, sem saber exatamente o que pensar daquilo.
— Vocês ouviram?
— Se ouvi... — Lily voltou para seu lugar ao lado da fogueira. — Sete equipes de busca. Com drones. Estão mesmo a fim de nos achar. Merda.
— Isso também, mas eu me referia a outra coisa. O que ele disse no final.
— “Um lar para nós”— Suna repetiu. — Foi o que ele disse. Nós. Ele é como a gente.
Ficamos em silêncio absorvendo aquilo. Lily sorria, talvez feliz em saber que não erámos as únicas com habilidades estranhas naquela floresta. Tinha mais alguém lá fora, nos esperando. E só imaginar isso também me deixava contente. É como se o mundo ficasse maior e aquilo tudo fosse menos assustador. Não estávamos tão sozinhas, afinal.
— É isso, gente. — Sunahara pulou a fogueira e sentou-se sobre uma das raízes da planta brilhante, mesmo suja com a lama do rio, seu cabelo dava o jeito de brilhar sob a luz do fogo e da espiga florescente. — Amanhã vamos aumentar o ritmo. Seguiremos reto, desviaremos do caminho apenas se não houver escolha. Pelo visto vamos cruzar com alguns mórficos então é melhor descansarem bem. Eu fico de vigia hoje.
Concordei automaticamente. Não era nenhuma surpresa que Sunahara era a que menos parecia cansada de nós. Eu pelo contrário estava um trapo. Meu preparo físico melhorara com os treinamentos dos últimos meses, mas nunca se igualaria a mutação viral dela.
As caixas de equipamentos que deixamos para trás guardavam tendas dobráveis que nos serviria de abrigo, como nas mochilas carregávamos apenas cordas, munição e comida tivemos que nos contentar com a cama de folhas secas. Pelo menos o frio não foi um problema, Deise usou sua habilidade termocondutora e expandiu o calor da fogueira de forma uniforme, como uma estufa invisível.
Deixei o capacete por perto para o caso do Olhos no Céu fazer contato novamente e fechei os olhos. O sono não demorou a me embalar, me levando para sonhos em que eu vivia uma vida normal em uma cidade ensolarada. Nada de guardas, nada de paredes blindadas. Nada de prisões.
A manhã seguinte foi difícil para mim. Acordei gemendo de dor. Minha perna, esquerda, a que tinha ficado presa no cinto da nave, havia piorado durante a noite. No dia anterior a dor estivera ali, mas não era nada que me impedisse de caminhar, talvez o esforço constante e adrenalina da fuga tinham amortecido a intensidade da lesão muscular. O fato é que quando tentei me levantar, foi como se alguém estivesse moendo minha coxa.
Suna e Lily me ajudaram a tirar as calças apertadas o que não também não foi nada agradável. Minha perna estava horrível. A pele exibia uma enorme marca rocha onde o a tira de borracha havia apertado enquanto eu estava pendurada na nave e bastava um toque para ser atravessada por dores dilacerantes.
— Por que não disse que estava tão ruim? — Suna reclamou.
— Eu não sabia que era tão grave. Não estava doendo tanto ontem — justifiquei. Minha cabeça estava apoiada na mochila abarrotada de objetos duros.
— Escolheu um ótimo momento para ficar aleijada, Anabel — Lily sorriu, pelo menos ela conseguia manter o bom humor. — Vamos ter que carregá-la o resto do caminho.
Deise estava de pé atrás de Suna, analisando minha situação em silêncio, o cabelo estava precariamente amarrado com um elástico, o rosto sardento sem os óculos a deixavam mais madura. Ela olhou para a mata em volta e eu reconheci a expressão de alguém dando vida a uma ideia.
— Deise, tem algo em mente para eu não perder essa perna? — encorajei-a a falar.
— É uma inflamação grave, mas você não vai perder a perna — disse ela e se agachou ao meu lado. — A não ser que movamos você, isso pode piorar sua condição e fazer seus músculos gangrenarem.
— Ah... isso, definitivamente não é bom, baixinha — Lily disse. — Tem alguma ideia?
— Ela precisa de um forte anti-inflamatório.
— Os kits médicos ficaram na nave — lembrou Suna. — Não temos nenhum remédio.
— Eu sei. Mas olhem em volta, estamos cercadas de plantas mutantes, algumas com propriedades medicinais.
— É, e outras com venenos que matam em segundos. — Lilyan estava certa. Nem sempre os mórficos eram os maiores riscos na floresta, e sim a própria floresta. Ela continuou, erguendo os braços: — A menos que saiba o que procurar, não podemos esfregar qualquer folha na perna de Anabel.
— Eu sei o que procurar — Deise mordeu o lábio. — Já li sobre...
— Não precisa explicar — Lily a puxou pela mão. — Suna, fique aí com a patricinha. Eu e Deise vamos procurar esse remédio mórfico para ela.
— Não demorem demais, lembrem-se que estamos em fuga! — Suna gritou quando elas já iam sumindo atrás um arbusto.
— Lily e seu jeito impulsivo — eu bufei. — Bom, a julgar minha situação, tenho que agradecer por ela não pensar muito antes de agir.
Suna riu e voltou a sentar-se perto de mim com o fuzil no colo.
— Aquelas duas se completam.
Eu me esforcei para sentar sem mover muito a perna. Olhei para o alto e respirei fundo novamente, sempre fazia isso quando tinha a chance. Respirar aquele ar era bom, mesmo sabendo que nele voavam as partículas virais microscópicas que quase destruíram a humanidade. Era bom. A dor quase foi embora quase fechei os olhos e me imaginei correndo descalça para o topo de uma colina, algo que eu nunca fiz na vida.
— Está doendo muito? — perguntou Sunahara ao me ver de olhos fechados.
— Até que não, só estou pensando para onde minha vida caminhou.
— Sem calças para o meio de uma floresta mórfica?
Eu ri.
— É, isso também. O que quero dizer é que jamais imaginaria ser capaz de lutar por minha vida desse jeito. Sério, a julgar pela vida que eu levava antes disso, as chances de eu ter sobrevivido até hoje são minúsculas.
— Você diria isso de Deise também. — Suna olhou para o nada, buscando antigas memórias. — Devia tê-la visto no primeiro dia na Pirâmide. Tão assustada, tão pequena – menor que Daniele – e tão frágil... eu tive certeza que ela morreria na primeira semana. Só que, como você, ela evoluiu e mostrou sua força, lutou e está aqui conosco.
O nome de Daniele fez meu coração afundar no peito, ela não teve a chance de lutar, fora simplesmente assassinada. Uma parte de mim me culpava por ser privilegiada e ter meu pai usando sua influência para me manter viva, caso contrário eu nem teria sido levada para a Pirâmide e sim morta de forma “acidental”. Meu pai convenceu os líderes da Cúpula de que eu valia o risco de ser mantida viva. Mas Daniele, não teve ninguém, nem mesmo Vladimir que a tinha no alcance dos braços, foi capaz de ajudá-la. Meu consolo era que o Diretor teria o que merecia e um pouco mais.
Durante meia hora eu e Suna ficamos encolhidas sobre a sombra daquela planta estranha sem qualquer sinal de Lily e Deise. Não ficamos preocupadas, Lily era uma boa domadora, podia dominar mórficos menores sem muitos problemas; e Deise, apesar de não poder usar sua habilidade mórfica para se defender, era uma ótima atiradora. Caso tudo desse errado, ambas sabiam correr muito bem também.
Só ficamos preocupadas mesmo quando o barulho de tiros ecoou na mata, fazendo pássaros voarem assustados para longe. Eu teria me levantado se pudesse, Suna o fez por mim, apontando a arma na direção do barulho.
— Foram elas? — perguntei.
— A menos que os drones já estejam na área, elas são as únicas armadas nessa floresta.
— Vamos atrás delas. — Tateei em volta em busca de algum galho que me servisse de muleta, mas Suna me impediu.
— Não tenho como te arrastar por aí. Vamos esperar que elas voltem. Foram só dois tiros, talvez estejam afugentando alguma coisa.
— Tipo aquele pássaro gigante que encontramos no rio? Um titã não vai fugir de balas.
Sunahara ficou em silêncio.
— Pode ir — continuei. — Eu fico aqui, não vai acontecer nada comigo.
— Certo. Se alguma coisa estranha aparecer, esmague.
Se eu seguisse aquele conselho teria que esmagar aquela floresta inteira, porém tinha certeza que dava conta de me proteger sozinha e aleijada. Sunahara já corria na direção dos disparos quando os arbusto começaram a sacudir ali. Ela parou e ergueu o fuzil com o dedo no gatilho pronta para disparar na ameaça. No entanto, quem saltou do mato foi Deise, com o rosto arranhado e arfando. Ela estava sozinha.
— Onde está Lily? — Suna perguntou. — O que aconteceu?
— U-Um mórf... — ela gaguejava sem ar. — Um mórfico nos atacou. Ele pegou Lily.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...