Meu pai me encarava impassível com os braços cruzados sobre o peito, o terno perfeitamente alinhado e a barba rala que o deixava com um ar juvenil e sábio. Vê-lo ali só me deu mais certeza que ele nada faria para me tirar daquele lugar. Apesar disso eu ainda me recusava a acreditar que meu pai fazia parte dos segredos sujos da Cúpula.
— Aposto que ele estava com saudades de você — debochou Vladimir. — Não o culpe por estar aqui, é parte do trabalho dele.
— Eu sei — falei com amargura, sem deixar de encará-lo. — É sempre o trabalho.
O que mais me irritava era que meu pai não tinha qualquer expressão no rosto, ele me olhava como se eu fosse uma desconhecida. Provavelmente está com nojo de mim, agora que sabe que eu carrego o vírus M. Está agradecendo cada segundo que se manteve longe durante todos aqueles anos, pensei.
— Muito bem, Anabel, vamos começar. — Vladimir fez um gesto com a mão para o alto e dois bipes rápidos apitaram no meu bloqueador. Alguém o havia desligado, pude sentir a mão invisível afrouxando o aperto no meu cérebro. Foi um alívio enorme, mas eu já não me importava mais. — Antes que você comece a ter ideias perigosas, quero avisá-la que os drones estão programados para derrubar você com uma carga dupla de sedativos ao menor sinal de hostilidade.
Eu o encarei.
— Talvez valha a pena alguns segundos de convulsões se eu esmagar você. — Eu realmente estava considerando aquilo. — É por isso que não tem ninguém nessa sala além de nós dois? E aquele cofre de vidro emborrachado? Vocês têm medo de mim?
— Eu não tenho medo de você — Vladimir garantiu, chegando mais perto. — Você é uma garota esperta e entende de tecnologia tanto quanto seu pai, sabe que esse bloqueador pode desligar seu cérebro bem mais rápido que os drones o fariam.
Ele tinha razão, o bloqueador deveria ter algum dispositivo de segurança que reativaria automaticamente em casos de emergência, era o que eu faria se o tivesse projetado.
— O que querem comigo? — perguntei tentando demonstrar confiança.
— O que você acha? — Vladimir indicou a esfera de aço na minha frente. — Todos vieram aqui para ver o que a mais nova e ilustre interna pode fazer. Então mostre a eles. — Ele se afastou alguns passos e me deixou frente a frente com a bola enorme. Os drones, entretanto, se posicionaram flutuando alto, prontos para me nocautear.
Fiquei encarando a esfera um bom tempo, até os líderes começarem a se entreolhar e cochichar uns com os outros. Deviam estar se perguntando por que eu estava demorando tanto, e eu me perguntava por que faria o que eles queriam, poderia simplesmente ficar em pé até eles cansarem da minha cara. Mas então eu lembrei do que fizeram com Suna depois que dei uma de atrevida com o Diretor. Ela havia me alertado que aqueles homens já tinham feito coisa bem pior do que os tiros, eu não duvidava nem um pouco. Decidi obedecer por medo do que poderia acontecer com ela. Talvez esse fosse o motivo para nos manterem juntas. Eles tinham espaço mais do que suficiente para nos deixar isoladas em alojamentos separados, mas não, permitiam que interagíssemos para que nos importássemos umas com as outras. Assim criávamos laços que eles poderiam usar contra nós.
E aquilo estava funcionando, eu conhecia Suna há apenas dois dias e já considerava ela uma amiga com quem contar. Pode ser o desespero de se sentir sozinha em um lugar horrível, mas ela também ficou feliz quando cheguei. Eu me importava com ela. Por isso, e só por isso, eu me concentrei na esfera e a fiz levitar como se não tivesse peso.
Os homens na antessala se inclinaram para frente como se não acreditassem no que viam, alguns deles sacaram projetores de suas poltronas e ficaram encarando a tela com espanto. Meu pai continuava como uma estátua de mármore, completamente quieto.
— De zero a dez — Vladimir também não parecia impressionado quando perguntou: — o quanto isso foi difícil para você?
Ele estava querendo saber meus limites com uma pergunta tão simples?
— Zero — respondi. Nunca quis treinar aquela habilidade, raramente a usava, mesmo assim, fazer aquilo não era nenhum desafio.
Deixei a bola cair desfazendo a coisa que a envolvia no ar, o chão emborrachado mal vibrou com o impacto. Vladimir fez outro sinal e um drone empilhador, com os braços metálicos robustos, surgiu de uma abertura na parede carregando outra esfera de aço. Me parecia ter o mesmo tamanho da primeira, mas o número gravado nela dizia que era três vezes mais pesada, quase uma tonelada.
— Faça as honras, lindinha — ordenou Vladimir me chamando por aquele apelido que eu odiava e ele sabia disso.
Cruzei os braços em um gesto desinteressado e fiz a esfera ir mais alto que a última. De novo, os líderes arregalaram os olhos para mim e as telas em suas mãos.
— E agora, o quão difícil foi? — Vladimir quis saber.
— Zero — repeti, impaciente.
— Muito bem, exibida, vamos dificultar.
Ele tirou do bolso uma venda que mais parecia aqueles óculos de mergulhador com as lentes completamente negras. Vi em seus olhos o prazer de poder me vendar, eu estendi o braço para que ele me desse a venda e eu mesma a colocasse, mas ele não abriu mão de mostrar controle da situação e veio até mim, arrumou meu cabelo para trás e encaixou o óculos sobre meus olhos. Tudo ficou escuro. Deixei a esfera cair no chão.
— Mostre potencial, Anabel. Mostre que você pode ser útil a eles ou vão te matar.
Aquilo foi só um sussurro de Vladimir no meu ouvido, enquanto ele fingia apertar a alça da venda que já estava ajustada. Me encolhi com seu hálito na minha orelha e contive a vontade de dar uma cotovelada em seu estômago. O que ele queria com aquilo? Era um conselho? Um aviso?
— Muito bem, consegue fazer as esferas levitarem sem vê-las? — perguntou ele, voltando ao tom de voz alto para ser ouvido pelos líderes.
Ainda intrigada com o que tinha acabado de acontecer, fiz as esferas irem alto de novo.
— De zero a dez...
— Zero — eu o interrompi. — Se eu souber onde estão os objetos posso fazê-los levitar sem problemas... E posso fazer o contrário também. — Falei bem alto e me demorei em cada sílaba. Queria assustá-los.
— É mesmo? Pode nos mostrar? — Sem ver pude captar um sentido oculto no pedido de Vladimir. Mostre potencial. Virei o rosto vendado na direção de sua voz afastada.
— Claro que posso — roubei o tom de deboche que ele adorava usar comigo.
Esmagar coisas exigia um pouco mais de esforço, mesmo assim não foi difícil trazer as esferas para o chão com velocidade, dessa vez o chão tremeu sobre meus pés e o baque surdo ecoou pela sala. Eu não parei, podia fazer melhor. Me concentrei no zumbido dos motores dos drones e os espremi contra o chão até ouvir a liga de fibra de vidro com que eram feitos ranger e os circuitos se quebrarem. Não tiveram tempo para disparar. Depois passei para a antessala, sabia em que direção estava, porém senti a dor aguda na mina cabeça, a mão invisível voltava a se fechar e esmagar meu cérebro. O bipe duplo voltou, o bloqueador fora reativado.
Caí de joelhos e arranquei a venda, estreitei os olhos para ver o estrago que tinha causado. As esferas estavam afundadas no chão de borracha partido e os drones eram apenas destroços disformes soltando fumaça. Olhei para a antessala e sorri, o vidro blindado exibia uma grande rachadura de cima a baixo, partindo ao meio a imagem do grupo assustado de engravatados atrás dele. Meu pai descruzara os braços e cobrira a boca com a mão, como se fitasse um monstro.
Sentei-me no chão, resistindo à dor e encarei Vladimir que havia caído com o impacto. Alarguei meu sorriso para dizer:
— Antes que pergunte, isso foi um zero também.
E então senti uma pancada forte no braço esquerdo, como se alguém tivesse atirado o arpão nele. Outra agulha! Gritei mentalmente, mas não tive tempo para entrar em pânico, tudo escureceu e dessa vez não era culpa da venda de Vladimir.
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Os Dons do M
خيال علميAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...