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As semanas seguintes passaram como um borrão marcados por treinamento e estudo até o limite da minha mente e corpo. Me senti um soldado inexperiente que logo seria jogado no campo de batalha mais sangrento e ainda não sabia nem usar uma arma. No meu caso a arma era o que tinha no cérebro e por melhor que eu tivesse me tornado com minha habilidade durante aquele tempo, ainda não me sentia preparada para o lado fora. Eu nunca me sentiria preparada, já tinha me convencido disso. Simplesmente aceitei a responsabilidade de parar uma nave em pleno ar como algo que precisava ser feito e ponto final.

  Na noite que antecedeu o dia da caçada eu não consegui pregar os olhos direito, algo que eu já esperava que fosse acontecer. Me deitei na cama e passei horas olhando para a janela virtual trincada. A lua cheia se movia por trás das rachaduras de um jeito fantasmagórico e eu só conseguia pensar que em alguma horas minha vida estaria em risco em uma viagem desesperada.

Depois de muito encorajamento, consegui assumir a responsabilidade que meu pai atribuiu a mim, mas isso não significou que eu parei de me preocupar. As poucas horas que consegui dormir no fim da madrugada foram povoadas de pesadelos, todos iguais: eu estava caindo em um poço sem fundo e em algum lugar as vozes de Deise, Sunahara e Lilyan se misturavam com a do meu pai, gritando em agonia.

Quando Suna me acordou de manhã, eu estava ensopada de suor, ofegando.

— Estava correndo enquanto dormia? — ela brincou, apertando o cabelo em um rabo de cavalo.

— Caindo — eu disse. Esfreguei as mãos no rosto e respirei fundo. — Acho que esse vai ser mais um trauma para minha coleção.

Se ela pudesse dizer alguma coisa sobre a fuga, teria me consolado dizendo algo otimista, mas tínhamos concordado em não comentar nada, então Suna só me puxou pelo braço para que eu levantasse de uma vez para me vestir.

As portas não abriram no horário de sempre, mais um lembrete de que aquele dia não seria como os outros. Nem preciso dizer que a espera só me deixou mais nervosa. Até mesmo Suna, que já tinha passado por aquilo inúmeras vezes, batia a ponta do pé embaixo da mesa em um ritmo frenético enquanto tentava ler alguma coisa da sua estante.

— Puxa, você costuma ser a focada da equipe — tentei quebrar o pesado clima de expectativa no ar. — Se continuar batendo o pé assim, vai fazer um buraco no chão para o andar de baixo.

— Anh? Ah, desculpa. — Ela estava dispersa e não era com a leitura. — Às vezes faço isso sem perceber.

Ela só fazia quando ficava muito ansiosa e aquela foi a primeira vez que a vi assim. Eu queria dizer que tudo ficaria bem, só que eu tinha minhas próprias dúvidas. Não que eu acreditasse que todas nós morreríamos. Assim como parei de repetir que não conseguiria cumprir minha parte na fuga porque estava começando a acreditar que era mesmo incapaz, não quis repetir sempre que tudo daria certo e começasse a ignorar os riscos reais.

— Talvez seja a fome — ela continuou, desconversando. — Está com fome? Minha barriga está rocando.

— Estou com muito medo para sentir fome. — Aquilo era bem verdade. — E antes que comece a reclamar eu vou tentar comer alguma coisa mesmo sem vontade. Sei que não vou durar um dia faminta lá fora.

— Vai precisar de toda sua força de vontade para encarar a comida hoje.

— Lá vem você. Por quê? O que eles fazem com a comida hoje?

Suna fechou o livro e deixou os ombros caírem tristes.

— É só ração de nutrientes. Antes das caçadas eles nunca liberam a máquina para não nos empanturramos.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora