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     Posso dizer que aquele foi um dos momentos mais traumáticos da minha vida. Ver uma pessoa levar um tiro não é como nos filmes. Nos filmes não é possível sentir o cheiro do sangue misturado com pólvora, o peso do corpo caindo. Foi tão brutal que aquela imagem jamais saiu da minha cabeça. Lembro até da posição em que Suna caiu, com o braço direito para trás e as pernas meio dobradas. Não pude impedir o soco poderoso da culpa, uma garota que tinha conhecido há poucas horas estava morta por minha causa.

     Minhas pernas bambearam com o choque e o guarda simplesmente me deixou escorregar até o chão. Fiquei sentada bem ao lado do corpo. Não tive qualquer reação além de encarar os buracos vermelhos em seu peito. Nem Vladimir, nem o Diretor disseram nada. O silêncio era tanto que pude ouvir a capsula vazia da bala rolando peso piso.

     — P-Pra que isso? — sussurrei atônita.  — Não precisavam matá-la. Por que não me mataram? 

     — Acho que seu pai não ficaria muito contente se soubesse que atirei em você — disse Vladimir enquanto entregava a pistola, ainda fumegando, para o guarda atrás de mim.  — Talvez agora você entenda, Anabel.

     Tinha algo de misterioso em seu tom de voz, como se quisesse dizer algo mais do que aquelas palavras significavam. Eu o encarei furiosa e pensei em esmagá-lo, foi a primeira vez que tive vontade de verdade de matar uma pessoa e não seria a última. Entretanto, o simples ato de pensar em usar minha habilidade ativou o bloqueador na minha cabeça, que começou a apitar em aviso. Já sentia como se uma mão invisível se preparasse para se fechar com força em volta do meu cérebro, então eu parei. Parei não somente pela dor, mas porque percebi algo que me fez perder a concentração: a mão de Suna havia se mexido.

     Ela está viva? Não é possível, com ferimentos como esses...

     Mas Suna me provou enganada quando, de repente, sentou-se no chão como uma criança que tinha acabado de cair da cadeirinha. Uma cena bizarra. O lado esquerdo do rosto dela estava salpicado com sangue. A franja lisa estava grudada na testa com o suor. Pessoas mortas não suam. Então ela abriu os olhos e eu pude ver aquele olhar violeta de novo. Ela limpou com a manga do uniforme parte do sangue na bochecha, se virou e sorriu para mim, um sorriso fraco, mas ainda um sorriso.

     Instintivamente eu engatinhei de costas para longe dela até esbarrar nas pernas do guarda sempre me vigiando.

     — Vocês usaram munição falsa! — procurei a explicação mais plausível para o que tinha acabado de ver. Mas eu sabia que a munição falsa não fazia aquele estrago e tinha certeza que o sangue no chão e os buracos em Suna não eram de mentira.

     — É tudo real, senhorita De Castro — a voz do Diretor ressoou pela sala como um fantasma distante. — Lembra que agora a pouco falei sobre um único indivíduo que o vírus M modificou de uma forma única? 

     — Sunahara? — indaguei incrédula.

     — Sim. O organismo da senhorita Ritsuko se adaptou tão bem ao vírus que suas células são incapazes de morrer naturalmente, e quando são destruídas à força como acabou de testemunhar, o vírus mórfico cria novas exatamente iguais as anteriores. Isso acontece de forma tão rápida que permite uma recuperação completa em alguns minutos ou horas, mesmo para lesões tão sérias como tiros.

     Recuperadora. Suna tinha dito que a categorizaram como recuperadora. Ficou obvio o porquê. 

     Eu estava tão assustada, tão confusa que não consegui dizer nada. O que aquilo significava? Encarando minha cara estupefata, Suna levantou a camisa empapada de sangue para me deixar ver os ferimentos. Porém, não havia mais ferimento nenhum, apenas um círculo avermelhado ficando cada vez menor onde as balas tinham perfurado.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora