Estudar sobre mórficos não era exatamente a minha ideia de como relaxar depois de um dia cansativo e estressante como aquele, mas eu não tive muita escolha. Aprender aumentaria minhas chances do lado de fora. E eu queria ser útil quando chegasse a hora, e não ser um estorvo para a equipe. Por isso eu li até minhas pálpebras ficarem tão pesadas que começaram a se fechar sozinhas. Suna me acompanhou como pôde, pronunciando os nomes compridos que eu não entendia e fazendo anotações que achava importante saber como as bizarrices que o M criou.
Um bom exemplo disso era uma espécie de planta do deserto que, literalmente, mudava de lugar. Quando ela entendia que o solo onde estava fincada era pobre demais, recolhia suas raízes, perdia as folhas e se enrolava em uma bola de galhos secos. Deixava-se levar pelo vento até encontrar solo fértil de novo, então esticava suas raízes no chão novamente. Bizarro e incrível.
— Chega por hoje. — Desliguei o projetor e o deslizei pela mesa para longe de mim. — Se eu ler mais uma palavra minha cabeça vai explodir!
— Concordo, vamos dormir. — Suna espichou-se em um bocejo demorado. Se ela estava cansada, eu estava exausta. Nem na faculdade tinha estudado tanto, sem contar a fera emplumada que tentara nos matar. Acho que posso dizer que aquele foi um dia bem esquisito.
Me arrastei até a cama, feliz em ocupar o beliche de baixo e evitar os quatro degraus de ferro que Suna teve que enfrentar para alcançar seu colchão. Eu, em seu lugar teria desistido e dormido no chão mesmo. Me espalhei sobre o travesseiro e dispensei até o cobertor.
— Suna? — chamei-a virando de bruços para a parede. — Acha que vamos conseguir sair daqui um dia?
— Você vai.
— E você, não quer ser livre?
Um suspiro pesado veio lá do alto.
— Sabe quanto tempo eu passei em lugares como esse, Anabel? Pra mim é difícil pensar em uma vida diferente dessa. Eu não sei como é viver lá fora. Pra ser bem sincera eu não sei o que esperar disso tudo.
Fiquei em silêncio um bom tempo processando aquelas palavras, formulando um argumento em minha mente cansada. Eu entendia o que ela sentia. Décadas de encarceramento destruíram a noção de uma vida normal. A verdade era que ela tinha medo. Medo não das criaturas do lado de fora, mas de ficar do lado de fora e medo de não se adaptar em uma vida além desse buraco.
— Lembra do que disse no meu primeiro dia aqui — finalmente falei, sem saber se ela ainda estava acordada para me ouvir. — Você disse para eu não desistir da minha vida. Para não os deixar vencer. Agora sou eu estou te pedindo isso. Não desista, Sunahara Ritsuko.
Ela não respondeu.
° ° °
No dia seguinte enfiei na cabeça que falaria com meu pai de alguma forma. Não importava o que Vladimir dissesse, ele teria que dar um jeito de consegui contanto onde quer que ele estivesse. Eu precisava de respostas urgentemente.
Assim que fomos liberadas para sair do quarto, disse a Suna que precisava pedir uns analgésicos para a doutora Arlene e depois a encontraria no refeitório. Não sei se ela acreditou em mim ou percebeu meu jeito evasivo como um sinal de que queria ficar só. Peguei um elevador diferente do dela e segui para o andar #1. Entretanto, eu mal dei dois passos no corredor antes de uma mãozorra me barrar.
— Aonde pensa que vai, garota? — Era um dos guardas carrancudos de preto, com o dedo sempre perto do gatilho da arma em sua cintura.
— Eu preciso falar com Vladimir. — Me mantive confiante, sabia que ele tinha mais medo de mim do que eu dele. Percebi uma olhadela rápida para meu bloqueador, só para ter certeza que estava ligado.
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Os Dons do M
Fiksi IlmiahAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...