Pelo resto do dia, depois do acidente de Daniele, a porta permaneceu trancada e nenhuma aviso nos foi dado. Tudo estava tão silêncio que achei que o mundo tinha parado.Depois do meu ataque de fúria deixei na proteção de acrílico do projetor uma rachadura circular que distorcia a areia do deserto. Minha mão latejava, a ponta da atadura desprendera-se e pendia como uma pele velha. Eu estava sentada na cama, segurando a mão ferida. Suna retraiu-se em sua mesa de estudos, com um olhar muito distante para o nada. Era a primeira vez que a via daquele jeito. A primeira vez que realmente via o que décadas em lugares como aquele tinham feito com ela. Sunahara Ritsuko era uma garota quebrada. Eu me perguntava quantas vezes ela tinha testemunhado cenas como aquela.
— Suna? — chamei depois de quase uma hora de silêncio. — Você está bem?
Um suspiro precedeu a resposta:
— Lembra quando você chegou aqui, Anabel? Eu disse a você que esse lugar não era tão ruim? Era mentira. Às vezes eu tento esquecer que aqui é o inferno. E o que aconteceu hoje é o tipo de coisa que me faz lembrar. Então, não, eu não estou bem.
Me levantei e fui até minha amiga. Parte de mim queria que ela chorasse, colocasse aquilo tudo pra fora, a outra parte suspeitava que se Suna se desmanchasse em lágrimas jamais se remontaria. Eu não chorei, não naquele dia, eu estava com muita raiva para chorar.
— Você quer conversar? — perguntei.
Ela baixou a cabeça e engoliu em seco, como se estivesse se segurando para não cair em prantos. Às vezes eu sentia toda a tristeza que Suna escondia atrás daqueles olhos coloridos.
— Você já se perguntou como descobri minha habilidade mórfica? — ela indagou.
— Já. Mas Vladimir me disse que foi algo traumático para você e eu não quis perguntar e te trazer memórias ruins. Não importa agora.
— Importa, sim. Depois que meus pais morreram ninguém conseguiu achar parentes que pudessem cuidar de mim. Estavam todos mortos ou desaparecidos. Foi uma família humilde que me adotou. Eles também tinham perdido o filho em um acidente e as leis da Cúpula japonesa permitiam que adotassem uma criança. — Então uma única lágrima escorreu pelo rosto de Suna. Sua expressão não mudou, era apenas a lágrima escapando por uma fenda na armadura dela. — Eles foram corajosos em me acolher. Assumir a responsabilidade de cuidar de uma criança em tempos tão difíceis. Apesar disso nunca me deixaram passar fome. Eu os amava tanto, Anabel
— Tenho certeza que eram ótimas pessoas — falei. — Por nunca me falou deles?
— Por que eles morreram. Já ouviu falar da falha catastrófica da Barreira do Japão?
Eu tinha ouvido. Todo mundo conhecia a história daquele desastre melhor do que Chernobyl. As primeiras versões das barreiras não tinham força suficiente para cobrir várias cidades como é atualmente. Antes apenas pequenas e médias cidades podiam ser protegidas, qualquer coisa maior que isso corria um sério risco de colapsar. Foi o que aconteceu em uma das Cúpulas japonesas.
A superpopulação em uma das seções da barreira sobrecarregou o sistema de filtragem de ar, que por sua vez, para compensar o consumo de energia, sobrecarregou o sistema de resfriamento dos núcleos nas torres que projetavam a malha de energia. Esse dominó de falhas foi descoberto quando a primeira peça já começava a cair. Tarde demais. Um após o outro, os sistemas foram desligando. Tentaram uma evacuação de emergência, mas logo viram que seria impossível esvaziar uma cidade inteira em algumas horas. A solução foi simples e cruel: selar a cidade e salvar o restante da Cúpula de um vazamento viral.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...