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Fiquei péssima depois da minha conversa com Vladimir. Não me saía da cabeça a expressão sofrida em seu rosto. Naquela noite, quando cheguei no quarto e contei tudo para Suna, ela repetiu o que tinha dito para mim em meus primeiros dias ali:

— Vladimir já esteve onde nós estamos, Anabel.

Da segunda vez eu entendi o que ela quis dizer. Vladimir não esqueceu o que era estar à mercê das vontades do Diretor, correndo perigo constante de ser dissecado. E querendo ou não, ele ainda estava preso, só que de forma diferente.

Não dormi direito. Passei metade da noite estudando meus arquivos e pensando em como Daniele estava assustada, sozinha naquele quarto. As regras não permitiam mais de dois internos por alojamento e nenhuma troca seria feita. Sunahara também ficara só depois da morte de sua antiga colega de quarto, Daniele também ficaria e não havia nada que pudéssemos fazer.

Suna me acompanhou na minha insônia. Também não conseguiu pregar os olhos, o que era bastante incomum. Foi bom poder conversar coisas aleatórias com ela, afastou minhas preocupações.

— E você tinha namorado lá em cima? — Ela perguntou em certo momento, com o queixo apoiado nas mãos sobre a mesa.

— Não... Namorado mesmo, não. — Respondi, incerta. Eu tive muitas aventuras com os rapazes da faculdade, mas não podia dizer que já tinha me apaixonado de verdade.

— Entendi, você é do tipo desapegada. Só curtição.

Eu ri.

— Já te contei um bocado da minha vida, você sabe que eu curtia muito.

Eu já não falava aquilo com a importância de antes. Depois da minha temporada naquele lugar, minha cabeça havia mudado. As festas, as bebedeiras, o dinheiro, tudo isso passou a ser tão superficial e sem importância quanto realmente era. Eu pensava somente em me manter viva e em como escapar. Aos poucos eu evoluía para uma Anabel mais forte, que esmagava a antiga medrosa e fútil.

— E você — devolvi —, já teve um namorado?

Ela olhou para as paredes como que buscando algo muito longínquo em sua memória.

— Sim. Conheci um garoto uma vez, na Cúpula do Japão. — Suna se endireitou na cadeira e cruzou os braços em frente aos seios. — Ele era um genético, o DNA dele mudava conforme o ambiente.

— Qual era o nome dele?

— Ashiro. Ashiro Mitsugu. Ele era um romântico. Às vezes nós escapávamos  do horário de restrição para passear pelos corredores escuros.

— Uau. Corredores escuros de um laboratório secreto japonês? Que romântico!

Dessa vez ela riu. Vi em seus olhos coloridos o sabor das boas memórias. Memórias que estavam guardadas em meio a tantas outras que ela colecionava ao longo dos anos e, tenho certeza, uma das poucas realmente felizes. Só que o sorriso sumiu depois um de suspiro e Suna revelou:

— Eu vi o morrer em uma caçada.

Foi só isso e depois silêncio. Silêncio esse que eu prolonguei, não perguntaria como aconteceu, o clima do dia já estava péssimo o suficiente para encerrá-lo com um relato de morte. Então, depois de um tempo, disse:

— Vamos dormir. Amanhã temos mais aulas.

— É.

Ela se levantou e caminhou roboticamente para sua cama. Naquela noite desliguei a janela virtual. Não queria a ilusão da pouca liberdade que ela me passava. Queria me sentir presa e sem saída. Queria ficar alerta.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora