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Já estava escuro quando cheguei em casa. Optei pelo caminho mais longo de volta, depois de ter deixado Ester na república. Passei o tempo todo pensando em como me livrar da paranoia de estar sendo vigiada, tentando esquecer a noite de ontem.

Estacionei o carro em frente à garagem, estranhando a escuridão da rua e na minha própria casa. Estava tudo um breu. Foi uma queda de energia no quarteirão inteiro? Por que as baterias auxiliares não estão funcionando? A porta da garagem não abriu quando o carro se aproximou, sem energia os sensores não funcionavam, então saí e fui abri-la manualmente, com a boa e velha chave.

Dentro de casa a escuridão era ainda mais cerrada, nem as luzes de emergência, que funcionavam também com baterias, estavam acesas. Estranhei aquilo e repeti mentalmente que era só uma falha geral. Nada de mais.

— Ligar luzes — testei o comando de voz por puro hábito.

A casa não me respondeu nada, nem mesmo para dizer qual era o problema. Fui tateando até uma gaveta e tirei de lá uma das muitas lanternas que espalhava pela casa exatamente para situações como essa. E quando a ascendi, as sombras compridas dos móveis projetando-se pelas paredes só me deixaram com mais medo.

— Talvez os drones de manutenção estejam trabalhando na rede elétrica e a companhia esqueceu de avisar. —  Eu tentava acalmar a mim mesma falando sozinha.  — É, foi isso. —  Um baque no quarto me fez pular e largar a lanterna no chão. Foi como se alguém tivesse atirado minha cama contra a parede. Fiquei um bom tempo esperando por barulho de passos no andar de cima, mas só havia silêncio.

— Ligar luzes. Por favor... — insisti com sussurro tão baixo que mesmo que a casa estivesse funcionando não me ouviria. Eu tinha esperanças que tudo se iluminasse de novo, mas a escuridão ainda me cobria.

Catei a lanterna no chão com a mão trêmula. Respirei fundo para colocar a cabeça no lugar.

— É só uma queda de energia — repeti e criei coragem para subir as escadas.

Passo após passo. Enquanto subia, me ocorreu a ideia de voltar para o carro e procurar um hotel para passar a noite. A casa me parecia mesmo assombrada.

— Eu estou sendo ridícula. Mórficos existem, fantasmas, não. —  E se fosse um Mórfico que tinha invadido minha casa e rastejava por meu quarto em busca de carne fresca? Não. Eles não podiam atravessar a Barreira. Era impossível!

Com o silêncio, me encorajei a subir o que restava da escada e caminhar até meu quarto. Escancarei a porta de uma vez e varri todo o cômodo com a luz da lanterna. Nenhum fantasma pairando sem peso perto da cama. Nenhum Mórfico me encarando com os olhos esbugalhados. Nada fora do lugar. Tudo comum como sempre. Mesmo com isso não fiquei mais tranquila. Não dormiria naquela casa às escuras. Me decidi pelo hotel.

Voltei quase correndo pelas escadas, já pensando qual era o hotel mais próximo. Foi quando as luzes acenderam. Eu estava chegando na sala e meus olhos foram ofuscados pelo brilho repentino. Fiquei cega por alguns segundos e acabei tropeçando em algo no meu caminho. Caí feio e bati a testa no piso. Doeu um bocado, mas a raiva era maior e xinguei alto o que quer tivesse me derrubado. Me sentei para ver o que era, e xinguei de novo. Era um dos robozinhos aspiradores que havia parado de funcionar também. Mas ele não dependia da energia da casa, por que não tinha voltado para a abertura na parede de onde eles saíam?

— Machucou, Anabel? —  Aquela voz me fez gelar dos pés a cabeça. Tinha alguém na sala comigo. Me virei tão rápido que meu pescoço doeu acompanhando minha testa. Um homem de terno prata e cabelo muito escuro empastado de gel me encarava, sentado casualmente no meu sofá. Seis homens encapuzados com toucas ninja e uniformes pretos estavam espalhados pela sala e apontavam armas para minha cabeça. Como não os vi quando cheguei?  — Não se machucou, não é? — ele repetiu.

— Q-Quem é você? — me levantei devagar, com as mãos erguidas em sinal de rendição.  — Como entraram aqui? —  Os uniformes não eram dos oficiais da Guarda da Cúpula e muito menos da polícia. Estavam ali por mim? Pelo que fiz?

— Antes de começarmos, quero pedir que se sente. —  O homem de terno esticou o braço para o outro sofá diante dele como se ele fosse o anfitrião e eu sua convidada. Apesar da vontade de correr, eu obedeci, encarando as armas seguindo cada movimento meu. Mas eu ainda podia esmagá-los se a coisa ficasse feia.  — Um aviso: nada de tentar correr eu nos transformar em panqueca, sim? — a voz dele era de deboche. Com um sorriso no canto da boca, ele continuou:  — Se tentar usar essa sua cabecinha perigosa, esses cavalheiros ao seu redor vão enchê-la de buracos. E você é tão bonitinha, não queremos que isso aconteça, não é mesmo?

— Vocês são da Cúpula? —  Me dei a liberdade de baixar as mãos já que nenhum dos homens de uniforme se mexeu para me algemar.  — Vieram pelo que fiz ontem? — Ele simplesmente cruzou as pernas de forma elegante e suspirou.

— Ah, na sua idade eu também fazia muita besteira. Eu era um merdeiro profissional. Mas eu era um zé-ninguém sem futuro. Agora, eu jamais imaginaria que você, Anabel, sendo filha de quem é, fosse cometer um erro tão grande como o de ontem. Pensei que fosse mais esperta. Seu pai vai ficar desapontado. —  Ele se recostou no sofá e fechou o terno com as pontas dos dedos, olhando a sala de lado a outro.  — Puxa, que bela casa! E aquele seu carrão lá fora? Uau! Seu pai te dá uma vida de princesa.

— Meu pai não está nem aí pra mim — eu quis gritar aquilo, mas, de novo, as armas apontadas para mim me inibiram.   — Todo esse luxo é só para deixar a consciência dele mais leve. É por isso que estão aqui? Querem dinheiro? Pode levar tudo da casa, pode levar o carro, eu não ligo.

Ele descruzou as pernas e se inclinou na minha direção, juntando as mãos, sorrindo.

— Nada disso me interessa, lindinha. Que tal falarmos sobre habilidades incomuns? Isso, sim, me interessa.

Meu coração martelava contra minhas costelas. Ele sabia!

— Foi um acidente. Eu não queria fazer aquilo. — Pensei que ia começar a chorar, só que as lágrimas não vieram, então eu apenas gesticulava feito uma louca enquanto tentava me explicar.  — O-O cara me deixou com raiva.  Fiz aquilo sem pensar.

— Ahh, para Anabel. Eu estou pouco me lixando para aquele playboyzinho de merda. — Ele ainda sorria assustadoramente. Apoiou a mão no queixo, como se aguardasse um grande espetáculo. — Quero saber como fez para triturar as pernas dele. Eu vi as imagens da câmera de segurança. Você pelo menos sabe como fez aquilo?

— Eu quero ligar para meu advogado — meu pedido saiu tão baixo quanto assustado e só fez o homem de terno dar risada da minha exigência.  — Sei dos meus direitos. Eu quero um advogado! — Dessa vez minha voz impôs alguma autoridade, pelo menos foi isso que achei.

— Direitos? — Ele balançou o dedo no ar em um gesto negativo.  — Não, lindinha, gente como eu e você não tem direito a nada. Você conseguiu se manter escondida por muito tempo, tenho que te dar esse crédito. Só que agora você se expôs por causa de um riquinho idiota e uma bebedeira. Anos de esforço em parecer normal jogados pela janela. É, essas festas de universitários sempre acabam dando merda.

Ele sabia bem mais do que eu tinha imaginado. Será que ele havia capturado e interrogado Ester horas antes? Teve tempo para isso?

— Sua amiga não tem nada a ver com isso, meu bem. —  Baixei os olhos para o chão. Minha expressão estava me denunciando, era isso ou aquele cara era um ótimo adivinho.  — Posso saber tudo o que você sabe, Anabel Luz de Castro. Sua vida não é segredo para mim. Eu e você somos muito parecidos.

Aquilo me deixou ainda mais assustada, e quando achei que não podia piorar, vi o homem levando a mão para dentro do terno, em um gesto casual como se fosse puxar do bolso um relógio antigo e ver as horas como se fazia antigamente. Mas o que ele sacou foi uma arma, uma pistola de cano largo e branco como marfim. Eu estudava tecnologia desde de pequena e sabia reconhecer algo avançado quando via. Aquela arma era o tipo de coisa que só os agentes da Cúpula tinham acesso. Ele não apontou aquela coisa para mim, mas isso não evitou que eu desse um pulo no sofá.

— Quieta aí, aberração! — gritou um dos homens encapuzados bem perto de mim, achou que eu ia correr e quase o fiz.

— O que você disse? — o homem de terno prata encarou o oficial armado com raiva no olhar. — Já não avisei para não usar essa palavra?! — ele esbravejou e o sorriso de deboche sumiu do rosto dele. Ele estava me defendendo ou só era maluco?

— Desculpe, senhor. — Pude ver o medo nos olhos do oficial, a única parte que não estava coberta pela touca ninja.  — Não vai se repetir, senhor.

— Talvez eu devesse deixar Anabel te esmagar também — o cara de terno só podia estar brincando, mas ainda não ria. Porém, se ele me desse a chance de fazer isso, eu faria. Faria qualquer coisa para fugir. Quem sabe eu poderia me concentrar e esmagar todos eles ao mesmo tempo?  — Não daria certo, lindinha — a voz do homem interrompeu minha ideia.  — Você ia demolir a casa junto e você também morreria se fizesse isso.

De novo ele adivinhou minhas intenções. Mas o que mais me apavorou foi o fato de ele estar certo.

— Olha, se tocarem em mim, meu pai vai acabar vocês. Sabem quem ele é, não sabem?

Ele massageou a testa com os olhos fechados como se já estivesse perdendo a paciência comigo, a arma estranha ainda estava em sua mão.

— Vamos, Anabel, você é uma garota inteligente, já deve ter percebido o que viemos fazer. Estamos aqui por você e pelo o que você carrega nessa sua cabecinha perigosa. E nem seu pai pode te salvar. Estamos acima da autoridade dele. —  Ele disse aquilo sorrindo de novo, enquanto cutucava a própria têmpora com o cano da arma.  — Muito bem, lindinha, vamos acabar logo com isso. Só mais uma pergunta e terminamos aqui: você gosta da sua vida?

O que eu deveria responder? Era algum tipo de teste? Ele me mataria se eu não passasse? Fiquei um tempo calada, pensando, até ele suspirar impaciente e erguer a arma para meu peito.

— Você gosta da sua vida, Anabel? — repetiu, o sorriso havia desaparecido de novo.

— E-Eu gosto. Eu gosto da minha vida — finalmente respondi.

Involuntariamente, fiz a mesinha de centro tremer e até flutuar alguns centímetros com o nervosismo. O homem olhou aquilo sem qualquer reação, apenas disse:

— É uma pena, porque sua vida acaba hoje.

Ouvi um estampido baixo e uma dor fina perfurou meu peito. Encarei o cano da arma cuspindo uma fumaça branca. Ele atirou em mim! Ele atirou em mim! Quis gritar, mas eu não tinha mais voz. A mesa voltou ao chão com um baque e meu corpo todo ficou mole. Senti frio. A morte era assim? Desabei no sofá e a sala girou sobre mim antes de tudo escurecer. Então escutei a voz do homem de terno prata no meu ouvido, mesmo assim era como se ele falasse de dentro de uma caverna muito distante e com eco:

— A gente se vê na vida após a morte, lindinha.

Então eu morri.

Os Dons do MOnde histórias criam vida. Descubra agora