Acordei sentindo frio, depois dor e depois medo. Meus braços latejavam a cada lento bater do meu coração. Não quis abrir os olhos e descobrir onde estava pois sabia que não ia gostar.
— Suna? — chamei na esperança de ouvir a voz alegre dela me dizendo que tudo ficaria bem. Não houve resposta. Aos poucos a névoa que embaçava meus pensamentos foi se dissipando e eu pude ouvir sons. Vozes distantes, passos ecoando no piso e bipes de máquinas.
— Ela está acordada, Vladimir — alguém disse a quilômetros de distancia. —Espere algum tempo para o efeito do sedativo passar completamente.
— Eu não tenho tempo pra isso. Abra aquela coisa e deixe-me falar com ela.
Era ele. Vladimir. Finalmente abri os olhos para perguntar onde tinham me colocado daquela vez. A primeira coisa que vi foi uma tampa de vidro sobre mim e através dela, um teto branco e iluminado. Tentei virar a cabeça, não consegui. Me esforcei para erguer os braços, chutar o vidro, mas era tudo em vão. Eu estava imóvel. Presa.
— Contenção, Anabel — Vladimir apareceu curvando-se sobre o vidro que deslizava para o lado. Os sons me invadiram e ar ficou um pouco mais quente. — Não se mexa muito ou vão apertar mais as travas.
— O q-que aconteceu? Que lugar é esse? — Minha voz saiu arrastada e arranhava minha garganta. Tinha muita sede, logo depois viria o enjoo.
— Não se lembra do seu surto? Você realmente não facilita minha vida, garota.
Um médico de cenho franzido aproximou-se do painel da minha capsula e verificou a tela com todos os status do meu corpo. Ele não parecia nem um pouco feliz e inclinou-se para sussurrar algo para Vladimir, que o dispensou com um estalar de língua.
— Por que estou presa nessa coisa? — Eu reclamava, mas não tentava me soltar, isso fazia meus braços doerem muito.
— Você vai se lembrar daqui a pouco quando o efeito do sedativo passar. Vou te dar um resumo apenas porque não tenho tempo: você teve um ataque de pânico durante o exame. — Vladimir cruzou os braços em frente ao peito largo como se tivesse com frio. Suspirou. — Anabel, você esmagou tudo em volta da capsula onde estava. Quebrou a bacia de um guarda, os braços e as pernas de um dos médicos e a Dra. Arlene só não virou panqueca porque foi rápida o suficiente para se jogar para longe da área de impacto.
Eu estava tão atônita que nem piscava, meus olhos começaram a lacrimejar, então eu os fechei de novo. Eu lembrava do meu terror, de me debater e da capsula rangendo, o vidro trincando. Só não tinha memórias das pessoas feridas.
— Tem muita sorte de não ter se matado — disse Vladimir. O olhar dele percorreu todo meu corpo estirado. — Mas os estilhaços fizeram um baita estrago. Tiveram que fazer várias cirurgias para tirar pedaços de vidro do seu peito e braços. Vai ficar com algumas cicatrizes. O mais estranho é que toda aquela força deveria ter transformado você em uma pasta de carne e sangue. A capsula afundou em um buraco de trinta e sete centímetros sabia?
— Quanto tempo fiquei desacordada?
— Dois dias. E teriam te deixando assim por mais tempo se eu não tivesse descido aqui. — Descido? O andar do Centro Cirúrgico era o 2. O único lugar mais abaixo que eu não fazia ideia do que se tratava era o... 10! Minha respiração acelerou e outro bipe soou em algum lugar. Não me atrevi a pedir que Vladimir confirmasse minha suspeita. Eles tinham me trazido para o topo da Pirâmide!
— É melhor você tratar de se acalmar ou vão te apagar de novo — ele avisou. Com o canto de olho percebi um médico se aproximando a passos rápidos, no entanto, Vladimir fez sinal que estava tudo bem. Com certeza nada estava bem.
— Foi sem querer. Não fiz aquilo por vontade própria! — ergui minha voz arranhada para me explicar. — Eu estava com medo, Vladimir!
— Eu sei. Eu vi sua mente enquanto estava desmaiada. Pânico. Terror. Desespero. Sua cabeça anda bem ruim. — Ele descruzou os braços e sentou-se no lugar do médico no painel. Olhou os dados na tela e coçou o queixo. — Só que isso não torna as coisas melhores pra você. Pelo contrário, só pioram. O Diretor pensou seriamente em te descartar. É perigosa demais. “Instável” foi a palavra que ele usou.
— Então por que ainda estou viva? — Era petulância demais da minha parte perguntar aquilo. Respirei fundo para manter o controle da minha língua e da minha cabeça.
Vladimir olhou para os lados antes de apoiar os cotovelos nos joelhos e se inclinar para sussurrar no meu ouvido.
— Por que seu pai mexeu os pauzinhos com gente poderosa da Cúpula e salvou esse seu pescoço teimoso mais uma vez. — Minha cabeça presa só me deixava ver o teto e sentir o hálito quente dele na minha orelha. — Ele foi obrigado a acelerar as coisas, lindinha. Vai ter que aprender a se controlar de agora em diante. Fazer tudo que eles pedirem. Mostrar que pode ser mais útil que perigosa. Se tiver mais um episodio desses, eles vão explodir sua cabeça na hora.
Eu não soube dizer se aquilo foi um aviso ou uma ameaça. O tom de voz dele fazia parecer que eram as duas coisas. De qualquer modo, entendi o recado: minha vida ali dentro estava por fio. Antes mesmo de me capturarem os líderes da Cúpula já pensavam em simplesmente me matar. Só assumiram o risco de me manter viva ali embaixo apenas graças a possibilidade absurda de eu ser útil na captura de mórficos importantes para a pesquisa contra o vírus.
— Eu quero voltar para o quarto — pedi, meus lábios tremendo.
Vladimir se levantou e alisou terno.
— Desculpa, lindinha, não vai dar. Você via ter que ficar aqui até esses cortes sararem e até eles modificarem seu bloqueador para responder mais rápido.
— Por favor, Vladimir. Não me deixe aqui! — Eu gritei. Não me sentia bem em suplicar qualquer coisa para ele, mas meu desespero era maior que o orgulho. O pior era me sentir tão vulnerável, sem nem sequer poder me debater. Imobilizada como um animal.
— Não há nada que eu possa fazer por quem vem parar no andar 10. Está fora da minha “jurisdição” . — Um suspiro. Os ombros tensos. Ele estava desconfortável. As vezes eu esquecia que ele também recebia ordens, que esteve preso como o resto de nós. Uma lágrima fujona escorreu pela minha bochecha e minha surpresa não poderia ter sido maior quando Vladimir puxou um lenço branco e secou meu rosto com cuidado. — Vai ter que ser forte, Anabel. Tem que aguentar firme.
— Eu quero sair daqui... — sussurrei minha súplica embora soubesse que não seria atendia.
— Você vai sair. Um dia. — Ele se afastou e chamou o médico e aquela expressão piedosa deixou seu rosto para dar lugar ao Vladimir tradicional, autoritário e debochado. — Coloque-a em sono profundo e se ela acordar tente não irritá-la, sim? O último médico que fez isso vai depender de uma cadeira de rodas por um bom tempo.
— Ela não vai acordar — o outro garantiu cauteloso.
Fechei os olhos enquanto o vidro me cobria novamente. Respirei fundo e tentei ficar tranquila. Eu tinha que fazer o que Vladimir pediu. Tinha que aguentar firme. Eu sairia dali de um jeito ou de outro. O gás tomou conta da capsula rapidamente, invadiu meus pulmões, viajou até meu cérebro e aos poucos foi puxando as tomadas da minha consciência. Me deixei levar pela escuridão. Mais uma vez.
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Os Dons do M
Science FictionAnabel Luz de Castro é uma universitária rica, inteligente e bem sucedida em sua vida independente. Cresceu cerdada de tudo o que precisava e mais. Tendo como pai um dos mais influentes e adorados estudiosos da nanotecnologia, que salvou a humanidad...