Em casa com um tangen

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     Mirus tentou algo mais amigável para controlar a situação: perguntou se Olívia tinha café. Ela ficou por quase um minuto paralisada, olhando para o nada, depois foi automaticamente em direção à cafeteira sobre a bancada que separava a sala da cozinha.

     O apartamento era bastante pequeno: sala com cozinha, um quarto pequeno e um banheiro. Não havia área de serviço, por isso um pequeno varal estava armado próximo à janela da sala. Servindo o café, Olívia ainda pensou que deveria ter recolhido o varal. Ela sentiu-se um pouco envergonhada, pois havia pendurado ali algumas peças de roupas íntimas. Mirus, por sua vez, olhava tudo aquilo curioso, sem dar a menor importância a uma impensada invasão de privacidade. A distância cultural entre eles era enorme, mas Olívia só saberia disso tempos depois.

– Eu nunca bebi café, Olívia! Mas já ouvi falar tanto, nos livros que li... em quase todos, há um momento em que os personagens bebem café. Agora descobri que já existem até lugares só pra se beber café. Um dia ainda irei a uma cafeteira...

     Olívia não prestava a atenção ao que Mirus falava, nem aos pequenos erros que ele cometia. Serviu o café sem esquentar e sentou no sofá esperando que ele também sentasse. Em pé, Mirus tomou um gole do café e comentou:

– Parece com uma bebida que temos, mas é servida quente. – Ao falar isto, ele reconheceu estar desviando do assunto de que viera tratar. Foi então que sentou no outro canto do pequeno sofá. Olívia recuou o corpo um pouco mais para trás, como defesa, para impedir que o homem a tocasse e levasse para outro lugar. Ele compreendeu o gesto e disse:

– Não vamos a mais nenhum lugar hoje. Eu a trouxe para casa para que você se sinta segura no seu ninho e assim eu possa começar toda a explicação que gostaria de te dar. – Limpou um pigarro da garganta com uma breve tosse e perguntou:

– Você já está bem? Podemos conversar?

     Fazia alguns minutos que Olívia não pronunciava nenhuma palavra. E só o que ela pode dizer naquele momento foi um – sim! – quase que obrigado a ser pronunciado. Ela não estava curiosa com toda a situação. Queria que aquele estranho fosse embora e não explicasse nada, porém sentia que isto não iria acontecer e que era melhor começar a entender tudo aquilo de uma vez e de forma rápida, para que conseguisse se livrar daquela situação.

 Queria que aquele estranho fosse embora e não explicasse nada, porém sentia que isto não iria acontecer e que era melhor começar a entender tudo aquilo de uma vez e de forma rápida, para que conseguisse se livrar daquela situação

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– Bem, Olívia! Vou começar com a proposta de emprego. Nós realmente precisamos de uma professora que saiba trabalhar com jovens. Na verdade, não serão nem crianças, nem adolescentes, mas jovens com a sua idade. São jovens, que voluntariamente, gostaram de nosso Programa de..., como vocês chamam? – ele tentou encontrar a palavra "intercâmbio", mas não conseguiu. Ele continuou:

– Bem... Eles gostariam de conhecer os humanos e o planeta Terra. Por isto se inscreveram no Programa de Estudos Humanos, para vir para cá estudar os humanos, a natureza, a sociedade...

     Ele dava uma explicação bastante lógica, como se os alunos estivessem logo ali, num país de fronteira, buscando passar algum tempo em outra cultura. Pois, no fundo, era algo bem próximo a esta ideia, apenas com o detalhe de os estudantes serem extraterrestres. E neste ponto, Mirus achou melhor explicar também algo mais:

– Você me achou parecido com um humano, por que nossa origem, milênios atrás, foi na Terra, porém tornamo-nos diferentes de vocês humanos e não coubemos mais a viver na Terra. Mudamos para outro mundo. Por isto temos forma humana, por isto nossas cidades não são tão diferentes das terrenas. Por isto nossa forma de comunicação, de linguagem, manteve-se muito parecida com a de vocês. Porém evoluímos em outros sentidos. Se você for para lá, se aceitar o emprego, conhecerá muitas diferenças. Mas à primeira vista, não parecemos tão estranhos aos humanos.

     Olívia começara a prestar a atenção ao que Mirus dizia e, como era de se esperar, começou a se ater aos detalhes. Foi somente neste momento que ela olhou cuidadosamente para ele. Reparou que ele tinha olhos um pouco mais acentuados, e pareciam pintados com um delineador; tinha também mãos maiores do que o normal, pernas mais longas e cabelos perfeitos para um homem em sua idade. A pele não tinha qualquer marca, sinal ou mancha. Além das diferenças físicas, ele errava algumas palavras, mas não como fazem os estrangeiros que não sabem a língua local. Era algo como errar um texto decorado; o jeito de falar era teatral, no sentido de teatro ruim: de atores sem espontaneidade e que usam palavras não adaptadas para a época. Eram erros que comete quem consulta tradutores digitais, sem refletir sobre a adequação das palavras. Ele tinha este "sem jeito" também no vestir. As roupas eram completamente fora de moda e estilo. As botas lembravam botas de cowboy americano, e o terno com colete lembrava um estilo do início do século passado. Isto tudo vinha por cima de uma blusa azul com uma estampa da qual Olívia não conseguiu distinguir as formas. Claro que isto não provava que ele era um alien, mas fazia sentido ao que ele diria a seguir:

– Nossa civilização era humana, mas deixou de ser, pois nossos antepassados evoluíram de modo muito diferente dos de outras civilizações da Terra. Ao contrário de fazer guerras e investir em conquistas de povos, não interessou aos nossos antepassados ter contato com outras civilizações. Ficaram completamente isolados por muito tempo, até que conseguiram um feito, uma conquista maior e melhor, para eles mesmos. Criaram um microcosmo, e assim evoluíram, até que surgiu a oportunidade de deixarem a Terra. Porém com o tempo, alguns de nossos Mestres e Conselheiros compreenderam que o contato com os humanos poderia ser bom, por uma série de motivos. Pensaram muito e decidiram que isto deveria ocorrer na forma de conhecimento unilateral: apenas um grupo pequeno dos nossos pesquisadores deveria vir aqui e, sem que nenhum humano soubesse, tentar conhecer a sua civilização humana... Saber em que e como os humanos se transformaram; saber mais sobre vocês. Alguns grupos vieram, e foram muito pouco bem sucedidos. Alguns fizeram alguns descobrimentos, mas enfrentaram problemas sérios... Isto é coisa para você saber depois. – Havia certo arrependimento de Mirus em ter tocado neste último detalhe. – O que importa é que este insucesso, alguns acham que foi causado pela falta de um humano no grupo. Aí que entram o nosso Programa e você... Você está sendo escolhida para ser este humano... Você compreende?

– Não compreendo quase nada do que o senhor está falando... Não entendo como humanos deixaram de ser humanos...

– Nossos ancestrais nasceram na Terra, só que tiveram uma formação diferente da formação de vocês, buscaram o máximo que puderam conhecer a nossa condição no universo. Depois compreenderam que existia algo além da natureza terrestre; então eles buscaram contato com nossos criadores... E conseguiram.

– O senhor se refere a um deus?

– Não. Nós não sabemos nada de deuses. Nossos criadores foram outros.

– Que outros?

     Aquela conversa tomava um rumo muito diferente daquele que Mirus havia previsto. Ele não imaginava que teria que explicar para Olívia toda a criação dos mundos, pelo menos o do mundo humano, na Terra, e o do mundo no qual ele vivia. Achava que iria falar para aquela humana que havia outro mundo, que ela entenderia perfeitamente e aceitaria o trabalho. No fundo, nem ele, nem os de seu mundo estavam aptos a ter um contato com humanos. Era justamente este o ponto que vinha atrapalhando todos os projetos sobre humanos durante anos. Contudo Mirus era um dos mais pacientes e compreensivos seres de seu mundo e estava muito disposto a persuadir Olívia a aceitar o emprego.

     Foi então que ele se ajeitou mais confortavelmente no sofá, dando a impressão de que iria iniciar uma grande explicação, e disse a Olívia que iria então contar de uma forma resumida a história da criação de seu mundo: um mundo chamado Tangen.

Olívia Tangen - Volume I: O Jogo dos MestresOnde histórias criam vida. Descubra agora