Olívia desdobrou as folhas. Do meio das páginas, caiu uma fotografia do menino que ela havia visto na enfermaria. Era uma foto dele de uniforme da Escola dos Pequenos, apenas identificável para quem conhecia o uniforme. O pequeno Martin era muito parecido com a pequena Evelien e com o mesmo olhar de tristeza. Ela começou ler a carta em voz alta:
Minha querida Evelien
Há anos, eu tento te escrever para esclarecer algo de nosso passado. Em todas as tentativas, faltou-me coragem em tocar num assunto tão delicado e tão triste. Porém nos últimos anos, eu tenho pensado muito em você e acho que você merece saber a verdade de seu passado.
Eu me chamo Martin e eu sou seu irmão mais velho.
Escrevo esta carta em meu leito de morte. Estou muito distante de você; em outro país, e por isto não poderei contar esta história pessoalmente.
Quando nossos pais morreram, você era uma menina de 4 anos e eu estava com 7 anos. Estava em idade para entrar na escola. Já estávamos morando com a vovó, quando certa noite ela me acordou durante a madrugada e me falou que havia feito minha matrícula em uma escola muito distante. Que no dia seguinte, alguém viria me buscar. Eu lembro de perguntar a ela por que eu não poderia estudar na escola de nosso bairro. E ela explicou que esta escola para onde eu iria era muito melhor. Eu tentei resistir, mas não adiantou. No outro dia, dois homens da escola vieram me buscar. Eu os vi conversando com a vovó e fugi. Você veio atrás de mim. Eu tentei me esconder na fábrica de linhas no final da rua – a fábrica que íamos pegar canudos. Mas de nada adiantou. Os homens foram lá e me levaram embora.
Eu não queria me separar de você, minha irmã querida. Mas eu era somente uma criança: não sabia para onde estavam me levando. Eu cresci e estudei a vida toda nesta escola. Após a formatura, eu me tornei professor de astronomia. Fui professor de muitas crianças, durante mais de sessenta anos. Nunca me casei, não tenho filhos. Mas eu tive uma boa vida.
Quando eu estava com 42 anos, eu consegui uma forma de viajar e voltar a Amsterdam. Fiquei parado em frente a casa da vovó por horas, até que você saiu. Você saiu empurrando uma cadeira de rodas com a nossa avó. Você estava tão bonita, tão feliz, e cuidando de vovó com tanto carinho. De repente, eu pensei que se eu lhe contasse esta história, a partir daquele dia, você a culparia e a abandonaria.
Mesmo que eu tenha noção da injustiça e do erro que ela cometeu nos separando, eu não queria seu mal. Consegui perdoá-la. Ela achou que estava fazendo o melhor para nós dois: eu frequentei uma boa escola e ela conseguiu cuidar de você tão bem. Não queira mal a nossa avó. Eram tempos difíceis.
A vida foi dura comigo, primeiro tirando a vida de nossos pais e logo depois me separando de você, mas eu consegui ser feliz com meus alunos e meus estudos. Sei que você foi feliz. Quis o destino que nossas vidas fossem assim e ainda tenho a esperança de um dia nos encontrarmos em outro mundo, outra vida. E aí sim, continuaremos nossa amizade interrompida.
Agora me despeço de você, esperando que fique bem.
Daquele que sempre te amou e nunca te esqueceu,
Martin.
Olívia, chorando, largou a carta na mesa e foi para seu quarto. Aurosa fez menção de segui-la, mas Naitan o segurou pelo braço, fazendo uma expressão para deixá-la chorar sozinha.
Ela só saiu do quarto depois que todos já haviam deitado. Encontrou na mesa, um prato com um grande sanduíche e seu conjunto de chá pronto para o preparo. Sentiu-se querida pelos alunos. Quando acabou a refeição, Naitan apareceu na sala e os dois foram sentar no sofá.
– Está melhor? – Perguntou ele.
– Não. – Disse ela. – Mas eu irei ficar. Só preciso de um tempo.
– Esta história é muito triste... Mais triste para você... Para nós, tangens, nós não temos estes vínculos com família... – Explicou Naitan.
– E com quem se ama? – Perguntou Olívia. – Vocês não criam vínculos? Não sentem a perda de um amor?
– A maioria dos tangens não ama, Liv! Criam vínculos, sentem as perdas... Mas é algo menos forte do que este amor que os humanos sentem.
– Eu não acredito nisto! – disse ela, e olhando diretamente para ele perguntou – E se algo me acontecesse, o que você sentiria?
Ele puxou Olívia para si, num abraço e disse:
– Eu não sou a maioria dos tangens... E não vou deixar que nada aconteça...
Noro entrou na sala e sentou do lado deles, dizendo:
– Eu não consigo dormir! Esta história mexeu demais comigo...
Logo em seguida vieram Lália e Aurosa com a desculpa de que queriam tomar um chá, e depois Turio, dizendo que estava sem sono. Olívia percebeu que aqueles tangens, assim como Naitan, não eram a maioria dos tangens. Eles eram únicos e brilhantes; o melhor grupo de alunos que ela poderia ter escolhido. Ficaram todos na sala aquela noite.
Quando Renus acordou, pronto para seu treinamento matinal, encontrou todos dormindo no chão da sala. "– um bando de crianças", pensou ele sorrindo, vendo Turio espalhado em uma das poltronas e Aurosa em outra; Noro deitado no chão, com a barriga servindo de travesseiro para Lália. Porém quando viu Olívia abraçada em Naitan no sofá, parou de sorrir. Ficou olhando os dois por um tempo, até que Naitan abriu os olhos e viu o Conselheiro lhe olhando, com uma expressão não muito boa.
Renus saiu pela porta da frente, antes mesmo que Naitan pudesse dizer algo.
Olívia acordou logo em seguida e ficou meio sem jeito naquela posição. Naitan sorriu para ela e deu um bom dia, sem cerimônia. Os outros não demoraram a acordar. Eles ainda puderam ver Renus fazendo seu treinamento no jardim. O café foi mais alegre, depois daquela noite mal dormida. Eles comentavam algo sobre estarem doloridos e despreparados fisicamente quando Renus entrou. Lália muito espontaneamente lhe perguntou:
– Conselheiro, se não fosse atrapalhar, o senhor me ensinaria alguns movimentos?
Todos previram o constrangimento que ela iria passar, com um "não" bem direto. Porém para surpresa geral, ele disse:
– Sim. – E entrou rumo ao seu quarto.
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Olívia Tangen - Volume I: O Jogo dos Mestres
FantasyOlívia é uma jovem que vive sozinha. Todas as suas tentativas de amizade e amor deram em nada. Aos 20 anos, ela quer muito provar que não é tão errada assim: que é alguém inteligente e capaz de continuar sendo independente. Para isto, arrisca uma mu...