Uma troca justa

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Sofia POV

Talvez o fato de mal ter pregado os olhos na noite passada estivesse dificultando ainda mais a minha concentração naquela aula chata de biologia, mas francamente? Citologia nunca foi o meu forte. Eucariontes, procariontes... Whatever.


Minhas atenções voltadas para o professor que andava de um lado para o outro a frente da sala, era mais um pretexto para que pudesse olhar diretamente para os ponteiros do relógio localizado bem no alto da parede. 12:31 quando aquele bendito sinal finalmente tocou - com um minuto de atraso a propósito -.
Meu material já estava mais ou menos organizado e só foi o prazo mesmo de guardar a apostila dentro da mochila e sair a mil por aqueles corredores. Não tinha uma razão específica para aquela pressa toda, mas eu tinha esperanças de que pudesse chegar em casa antes de precisar lidar com aquele olhar de reprovação do meu pai pesando sobre mim durante o nosso almoço.

- Ei! - quando ouvi aquela voz conhecida me virei para saber o que ela queria dessa vez. - Vai tirar o pai da forca, é?

Não era nada importante pelo visto; voltei a caminhar em passos largos em direção ao portão principal e fiz um gesto com a mão para que ela me acompanhasse. Eu já tinha dispensado o convite para ir almoçar na casa dela e ao que tudo indicava, Luísa ainda não tinha se dado por satisfeita. As vezes me irritava aquele jeito superprotetor dela e por mais que eu ainda fosse alguns meses mais velha, sentia como se ela tivesse quase uma proteção materna para comigo. Luísa fazia parte de uma família dessas bem tradicionais, com direito a pai, mãe e irmãos - algo bem distante da minha realidade diga-se de passagem -. De forma que vez ou outra, eu sentia como se ela quisesse me incluir nesse universo apenas com a intenção de me tirar um pouco daquela loucura diária que era a convivência com o meu pai.

- Lu, tá tudo bem. - ela finalmente me alcançou e eu a respondi com franqueza enquanto nos dirigíamos para a saída - Hoje eu tenho ballet - fiz uma careta revirando os olhos e a mesma só fez rir - E meu pai se eu bem conheço deve ter passado a noite na casa da fulaninha. Não vai aparecer tão cedo.

Um breve silêncio estava presente entre nós e me preocupava o fato de Luísa estar com o olhar perdido para um canto qualquer.

- Tem certeza? - estava de costas para a rua e no momento em que ela fez aquela pergunta gesticulando com a cabeça me virei como em um reflexo. Lá estava ele com o carro estacionado do outro lado -

- Ai tá brincando né? - fechei os olhos e balancei a cabeça repetidas vezes em negação - Diz que ele não me viu.

Tarde demais. Eu reconheceria aquela buzina mesmo se estivesse a quilômetros de distância.

- Quer que eu vá com vocês? - ela me perguntou com doçura -

Me senti bem tentada a aceitar, mas para que ele tivesse vindo me buscar, o assunto era sério e eu não queria correr o risco de levar um mega esporro na frente de minha amiga.

Me despedi dela meio na correria fazendo os devidos agradecimentos pela hospitalidade e tratei de atravessar a rua em seguida.

Os vidros escuros daquele carro não seriam suficientes para esconder o sorriso que ele trazia estampado em sua face e convenhamos, eu já estava adivinhando o motivo daquela felicidade toda. Pelo menos dessa vez ela não estava com ele.

- Deu folga pro Jocélio hoje? - eu disse sem sequer encará-lo; me acomodei no banco da frente batendo a porta em seguida -

- Digamos que sim - ele parou por um instante amparando as mãos no volante e suspirou fundo. Parecia estar indo contra todo o orgulho que eu já sabia que ele tinha - O que me diz de uns nachos com chilli hein? - agora seu tom de voz era suave, o que fez com que eu me virasse para ele instantaneamente. Aquele era meu prato favorito da vida e ele sabia disso -

- Com uma margarita pra acompanhar? - ergui a sobrancelha e lancei a ele um sorriso irônico -

Ele efetuou uma risada nasal e balançou a cabeça em negação.

- Que que eu faço com você, baixinha?


Miguel POV

Eu tinha razões o suficiente para manter Sofia bem longe da minha vida afetiva e isso ia muito além do ciúmes e da necessidade que ela sentia de "não me dividir com mais ninguém".
Eu sempre quis manter essa distância pelo fato de não depositar fé alguma nos rabos de saia que me envolvi ao longo dos anos.
Não faria sentido despertar o amor de alguém quando eu não tinha intenções de ficar, mas agora a história era outra. Em um intervalo muito curto de tempo, eu havia encontrado um ponto de paz, uma mulher que eu jamais me cansaria de enaltecer. Não seria justo que eu tivesse alguma pendência com minha filha antes de inseri-la de vez dentro do nosso núcleo familiar.

Eu pensava que dormiria feito uma pedra na noite anterior, mas não tirava da cabeça toda a magia que algumas cervejas e duetos cafonérrimos proporcionaram. Era algo além de prazer físico ou de alguma necessidade masculina, era quase um encontro de almas. A preocupação que ela demonstrava ter com Sofia apesar de tudo, era algo que me cativava ainda mais. Que me dava uma certa segurança até. Longe de mim encarregá-la de fazer as vezes de mãe, eu só queria que alguém enxergasse Sofia além de uma cara emburrada e um gênio difícil e aparentemente ela era esse alguém. Faria tudo que pudesse para uni-las e talvez a proximidade daquele fim de semana bem planejado, fosse a oportunidade perfeita.

Íamos conversando bastante a vontade dentro daquele carro, acho que tratá-la com doçura só pra variar, tinha lá suas vantagens. Me divertia com as reações dela ao mexer no porta luvas e se deparar com o meu acervo de cd's talvez bastante eclético para seus ouvidos.

- Frank Sinatra? Sério isso pai? - ela franziu a testa quando pegou o objeto em mãos -

- Queria o que? Que eu tivesse a discografia do Tupac aqui? - me virei para ela a tempo de vê-la revirando os olhos. Até que me ocorreu algo que talvez a agradasse -

- Hum, devo ter alguma coisa do Nirvana. - uni meus lábios curioso para assistir a reação dela. Seus olhos praticamente brilharam no momento em que ouviu aquilo - Procura aí.

Sofia passava tanto tempo andando com nosso motorista, que raramente ela entrava naquele carro - talvez por essa razão pouquíssimas vezes tenha se atentado aos meus discos. - Quase sempre eu me culpava por isso, mas era fato que nossos horários dificilmente batiam. Ela colocou o cd para tocar, aumentou o volume de forma considerável e deu início a uma performance que provavelmente invejaria o próprio Kurt Cobain.

[...]

Comida mexicana nem era das minhas prediletas, menos ainda pelo fato de que pretendia perder mais dois quilos até o fim do mês. Mas por hoje acho que estava valendo a pena o sacrifício. Aquele ambiente tomado por cores vibrantes e bastante intimista era o local favorito dela em São Paulo e eu não queria correr o risco de errar de novo.

My Fair LadiesOnde histórias criam vida. Descubra agora