Sem planejar

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15/10/96 - Miguel POV

Por mais que estivesse me esforçando para que fosse profissional o bastante para que não deixasse transparecer qualquer desconforto, eu sentia que de alguma forma todos ali já haviam sacado que algo estava fora do lugar.

- Vamo, Miguel! - a voz grave de Dennis Carvalho ecoava por aquele palco enquanto o mesmo batia palmas repetidas vezes - Se você não tiver foco a gente não sai daqui hoje.

Aquela já era a terceira vez só naquele dia em que ele me cobrava atenção; em condições normais eu o mandaria para aquele lugar e daria continuidade ao ensaio me empenhando em melhorar, mas hoje de fato eu não sabia se ia conseguir.

- Eu tô com fome, pomba! Quase uma da tarde e ninguém aqui comeu. - tentei disfarçar usando aquilo como desculpa, mas de fato estava mesmo faminto -

- As vezes eu me esqueço que você fica irreconhecível quando está com fome. - Dennis balançava a cabeça em negação - Vai lá. - senti sua mão bater de leve em meus ombros - . Vejo vocês em duas horas - ele alterou um pouco a voz para fazer aquele comunicado ao resto do elenco -

Saí caminhando em passos apressados até o nosso camarim sem nem olhar pra trás, mas de alguma forma eu sentia que o olhar vazio de Marisa ainda pesava sobre mim em busca de respostas; sentia que não era uma cobrança, ela estava preocupada apenas. Eu já não era o mesmo com ela há dias e era inevitável disfarçar.

- O que tá pegando, irmão? - eu estava de costas com o telefone em mãos, pediria qualquer coisa para almoçar. Quando me virei, Tom já estava bem atrás de mim -

- Por que a pergunta? - eu o confrontei em um visível desinteresse -

- O pessoal não comenta outra coisa. - nem quis saber o restante, já tinha certeza que ele faria alguma piadinha fora de hora - Disseram que você ficou assim depois que você e a Marisa voltaram de viagem.

Marisa e eu passamos apenas três dias em Trancoso na semana anterior; queria comemorar o meu aniversário um pouco isolado e ela acabou concordando em me acompanhar. Não havia comentado nada daquela viagem com ninguém, ainda não compreendia aonde ele queria chegar.

- E o que isso tem a ver?

- Tão falando aí que você voltou estressado assim porque não deu conta. - ele mordeu o lábio inferior soltando uma gargalhada contida em seguida. Eu não queria dar corda mas foi inevitável não sorrir junto -

- Pergunta pra ela. - eu o respondi com certa segurança - Quanto a isso ela não tem do que reclamar.

- Sei não, viu. Dona Marisa Orth tá bem estranha desde ontem.

Marisa POV

- E aí? E aí? Diz logo o que deu. - Claudia estava bem atrás de mim e já dava sinais de impaciência -

Não era exagero dizer que minha vida estava dependendo daquele bendito papel que eu segurava em mãos. Claudia e eu estávamos no camarim a alguns minutos, ela era a única pessoa a saber de todo o meu pânico vivido nas últimas semanas e nada mais justo que ela estivesse comigo naquele momento; quando me queixei sobre todos aqueles sintomas ela cantou a pedra muito mais rápido que eu. Depois de muita insistência ela me convenceu a fazer um exame laboratorial, tinha pego o resultado pela manhã mas só agora criava coragem para manuseá-lo novamente. Com as mãos ainda trêmulas abri apressada aquele envelope e ali estava a resposta para todas as minhas dúvidas.

- D-deu positivo. - minha voz falhou e eu praticamente desabei ainda atônita sobre aquele sofá. -

- Para aí, deixa eu ver.

Ela se sentou ao meu lado arrancando o papel de minhas mãos e ficou em silêncio durante alguns segundos enquanto corria os olhos por todas aquelas letras miúdas.

- Você tá grávida. - ela me encarava boquiaberta e ainda aparentava estar em fase de negação tanto quanto eu -

Por mais que ela estivesse apenas afirmando o óbvio, senti um mal estar descomunal quando a ouvi confirmar tudo o que eu mais temia.

- Isso não tá acontecendo - aquele meu riso era minha única defesa agora, estava rindo de nervoso mesmo - Deve ter sido um engano.

- E foi teu mesmo. - ela disse quase em tom de reprovação - Olha aí o nome da virose que você cismou que tinha pegado.

Tentei não dar muita importância para aquele puxão de orelha tão sutil, eu precisava organizar as minhas ideias e não o faria se continuasse tentando me justificar.

- Claudia eu não posso ter um filho agora - eu a analisava quase em desespero - Eu tô tão feliz em trabalhar com vocês, tão realizada com os rumos que minha carreira vem tomando. Me diz que eu não tô sendo egoísta em não querer abrir mão disso tudo. - senti meus olhos marejarem e tive medo de desabar bem na frente dela -

- Marisa, olha só - ela se aproximou mais de mim segurando minhas mãos de forma afetiva - Eu sei que você ainda tá assustada com tudo isso, mas não se precipita dessa forma. Você não vai ficar sem trabalho e além do mais...

- Mas o problema não é só esse! - eu estava nervosa demais, meu tom de voz alterado entregava isso de cara - Já parou pra pensar que só faz seis meses que seu amigo e eu estamos juntos? - meu rosto queimava e eu tentava me conter ao máximo - Nem sei se o nosso namoro é firme o suficiente ainda, ele mal tem tempo de cuidar da filha dele, como acha que...

- Aquele homem te ama, Marisa.

Eu nunca tinha ouvido aquilo da boca dele e por mais que estivesse lutando para abolir de vez aquela insegurança que me assolava no começo do namoro, eu ainda tinha minhas dúvidas. Eu sentia que ele estava se afastando, sentia como se toda a magia do início tivesse se perdido para dar lugar a um homem frio e muitas vezes ausente.

Desde o começo de tudo ele me pedia encarecidamente para que nossos desentendimentos ficassem somente entre nós; Miguel detestava a ideia de contar com a opinião de terceiros, mas eu não tinha escolha. Estava completamente perdida.

- Ele não te contou sobre a viagem? - me virei para ela novamente quando saí daquele devaneio. Claudia fez que não com a cabeça e eu decidi prosseguir - No sábado ele sumiu o dia todo; quando eu acordei por volta de nove horas ele já tinha saído. Eu ligava, ligava e nada. Quando deu cinco e meia da tarde ele apareceu no hotel dizendo que tinha ido passar o dia com Elba e uns amigos, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.

- Mentira? - ela parecia perplexa demais para formar frases mais longas -

- Não bastasse tudo isso, no domingo eu acordei vomitando até as tripas e ele ficou de cara amarrada o dia todo por que precisou ficar tomando conta de mim ao invés de sair pra jogar buraco com sei lá quem.

Eu precisava desabafar, estava tão magoada com tudo aquilo que não hesitei em permitir que aquelas lágrimas rolassem pelo meu rosto afora.

- Então é por isso que ele tá de bico desde ontem?

Eu apenas assenti.

- Agora me diz qual o sentido de me levar junto? Sendo que ele só ficou comigo na sexta e mesmo assim as vezes parecia que era por obrigação.

- Ele não faria isso, Marisa. Acho que...

- Ah não? O que eu te disse já não foi o suficiente?

Ela pareceu refletir um pouco sobre tudo aquilo.

- Agora você entende o meu medo em ter esse filho?

- Eu sei, mas você ainda precisa contar pra ele. - ela me observou com um semblante vago - Vai pegar de surpresa, mas Miguelzinho não foge de responsabilidade.

- Não sei se hoje é o melhor dia pra isso. Não vê o jeito que ele está irritado?

- Ele sempre surta quando pega mil coisas pra fazer e não dá conta. Longe de mim querer justificar a palhaçada que ele fez contigo no fim de semana, mas esse mau humor tem a ver com excesso de trabalho também.

- E eu não sei se isso te conforta - ela fez uma pequena pausa e repousou a mão direita sobre meu ventre. Nada seria capaz de descrever a estranheza daquele momento, mas eu sorri diante da ternura com a qual ela me encarava - Mas se por acaso tiver alguma coisa de errado entre vocês, esse bebezinho aqui vai se encarregar de colocar tudo no lugar.

Talvez aquela não fosse exatamente a segurança que eu precisava agora, mas ouvir aquilo me trouxe uma estranha sensação de confiança. Ela o conhecia a mais tempo que eu, provavelmente já havia presenciado situações semelhantes, então se Claudinha dizia que tudo daria certo, eu não precisava temer.

Miguel POV

Cavalcante continuava insistindo naquele assunto; por mais que eu fugisse ele já sabia que havia algo errado. Estávamos mais próximos depois daqueles meses de convivência, já o considerava como amigo. E apesar de odiar expor minha vida pessoal, eu sentia que precisava falar sobre aquilo com ele. Talvez os seus anos de experiência matrimonial pudessem ser uteis para indicar alguma luz no fim do túnel.

- Tom - ele estava sentado no sofá de frente para mim e ergueu a cabeça rapidamente quando o chamei - Você acha que eu sou o mesmo de seis meses atrás?

- Em que sentido?

- O Miguel que você conheceu em Março é igual ao Miguel de agora?

- Eu ainda não tô entendendo aonde você quer chegar. - ele fechou a revista que estava folheando e me analisou confuso -

- Eu preciso entender o que tem de errado comigo. Parece que nos últimos tempos eu só vivo em função da Marisa. - encarei meu colo unicamente para evitar o olhar de desaprovação dele. Talvez aquilo realmente soasse patético demais -

- E desde quando isso é ruim?

- Desde que eu deixei de ser eu. - o respondi quase que sem pensar, já estava impaciente -

- Olha, se você tá dizendo isso por causa das brincadeiras, eu te peço perdão. Não era pra...

- Não, não é isso. - o interrompi prontamente - Na verdade já faz um tempo que eu ando repensando o meu relacionamento com ela, mas parece que a ficha só caiu nesses dias que viajamos.

- O que aconteceu nessa viagem?

Eu sabia que tinha agido feito um moleque com ela e de certa forma me envergonhava ter que dizer aquilo a alguém. Depois de muito analisar, criei coragem para dizer a ele todas as desventuras daqueles últimos dias.

- Eu não sei o que me deu, Tom. Parece que eu me arrependi por levá-la, sabe? E foi tão estranho passar o meu aniversário longe da Sofia.

- Mas a Marisa te impediu de levar a sua filha com vocês?

- Muito pelo contrário, ela insistiu muito para que Sofia fosse. Mas coincidiu de ser justamente na semana de provas dela.

- Em outras palavras, você pensa em terminar? É isso?

Ele decidiu ser direto e eu precisei pensar um pouco mais sobre o que ele havia questionado.

- Não quero terminar. Eu gosto dela, Tom. - voltei minhas atenções a ele e o mesmo apenas concordava com a cabeça - Gosto das coisas boas que ela me proporciona e gosto da companhia. - parei por um instante tentando reorganizar minhas ideias - Só que eu não gosto da companhia dela o tempo todo.

- O que quer dizer?

Respirei fundo antes de dar continuidade.

- Que eu venho me sentindo sufocado. Ela passou três finais de semana seguidos lá em casa, Tom. Eu precisava adiantar os capítulos da novela e a última coisa que eu fiz com ela estando comigo foi isso.

- Então hoje você vai me prometer que vai dizer tudo isso a ela. Não é justo que ela continue achando que tá tudo bem entre vocês.

Permiti que o ar saísse pelo meu nariz e neguei com a cabeça algumas vezes. Na verdade eu acho que ela já sabia há tempos que havia algo errado.

- Eu vou pedir um tempo. Preciso pensar, de verdade.

- Convida ela pra jantar. Quem sabe pode até ser uma oportunidade pra você se redimir desse fim de semana catastrófico?

Permaneci em silêncio e me reservei apenas a desviar meu olhar do dele; não havia a menor possibilidade de uma reconciliação hoje e eu sabia disso. Marisa ainda não tinha engolido aquela minha indiferença e certamente precisaria mais de que um simples jantar para que me perdoasse.

- Isso não faz sentido, Tom. De que adianta eu me retratar se corro o risco de fazer o mesmo daqui dois dias?

Meu almoço havia acabado de chegar e quando já estava indo recebê-lo, me virei para encará-lo uma última vez.

- A Marisa ainda vai me agradecer por eu estar fazendo isso.

Jamais pensei que fosse ceder a algo que eu considerava um tanto quanto imaturo, mas eu de fato precisava colocar a cabeça no lugar. Em pouco mais de um mês nós entraríamos de férias e aquele período longe um do outro, serviria para que eu realmente entendesse de uma vez por todas o que eu sentia por ela.

(...)



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