Marisa
Não estava me custando nada repetir a pergunta que ele havia feito só para ter certeza se era aquilo mesmo, não entrava na minha cabeça que ele poderia estar usando de tamanho egoísmo. Logo ele.
- Eu quero saber o que você pensa sobre isso. — ele disse já em desistência após um tempo analisando minha reação; pisquei os olhos repetidas vezes e contei até três antes que meus maus modos falassem mais alto —
- Como você me joga uma responsabilidade dessas, Gustavo? — eu disse em tom alterado — Como eu abriria mão do meu trabalho, dos meus planos? Eu tenho uma vida aqui.
- E não vale a pena construir uma nova ao meu lado? — ele me analisava esperançoso —
Eu não me deixaria levar por aquele olhar pidão; não mesmo. A minha vontade sempre seria a minha prioridade antes de qualquer parceiro e eu jurava que ele já sabia disso. Tentaria encontrar alguma maneira de deixar claro sem magoá-lo, mas francamente? Ele estava pedindo.
- A quanto tempo você me conhece mesmo? Será que tudo que eu vivi pra me consagrar como atriz não significou nada?
- Essa vida não é pra você. Você só está deslumbrada. — curto e grosso —
Senti um nó se formar em minha garganta e uma vontade súbita de chorar, eu estava mais sensível que o normal é verdade, mas aquilo havia me magoado de tantas formas que não caberia aqui. Ele melhor do que ninguém conhecia todo o meu trajeto, dos incontáveis enfrentamentos com os meus pais para que seguisse o meu sonho... Chegava a ser desumana aquela colocação.
- Amanhã ou depois você pode ser mandada embora e ninguém garante que alguma outra empresa abra as portas pra te receber. Se você retomar sua carreira como psicóloga junto comigo...
- Mas eu me garanto — juntei o resto de dignidade que ainda me restava e fui firme ao me dirigir a ele — E eu posso te assegurar que sem emprego eu não fico.
Eu só estava esperando a deixa para colocá-lo pra fora dali. Decidi sair de perto antes que minha fragilidade ficasse exposta, sabia que a qualquer minuto eu poderia desabar. O deixei sozinho no sofá e fui até a cozinha, eu precisava de uma água para me acalmar.
- Você já parou pra pensar em como vai ser depois que o bebê nascer? — eu não estava acreditando que ele tinha vindo atrás de mim — A pressão que vai ser para que você volte ao seu corpo rápido, a problemática que vai envolver a sua ausência no programa... Isso sem contar que...
- Por que isso te preocupa tanto? — devolvi a ele a pergunta —
- Porque eu sei que vai cair tudo nas suas costas. O Miguel não vai te dar suporte e essa criança vai passar mais tempo com a babá do que com vocês dois.
- Ah claro e você virou vidente agora — bati o copo com força sobre a bancada e saí andando irritada, não contava que ele viria atrás mais uma vez —
- Marisa — ele me puxou pelo braço fazendo com que ficássemos frente a frente — Eu abri mão de tudo só pra vir atrás de você, passei por cima da minha mãe e do resto da minha família. E agora é assim que você retribui?
- Você não voltou por minha causa, Gustavo — desfiz nosso contato evidenciando meu desconforto — Sua preocupação inicial era a saúde da sua avó, tanto que você trouxe a sua mãe junto. Agora me responde uma coisa — cruzei meus braços e o fitei séria — Meu namoro com o Miguel não era segredo pra ninguém, por que ainda assim você me procurou?
- Você parece arrependida com esse término...
- Responde o que eu perguntei. — eu disse pausadamente —
- Eu nunca te esqueci totalmente — eu já não sabia mais em quê acreditar — E nunca engoli bem o namoro de vocês, pra mim era tudo midiático demais e ele só estava te usando. Não queria que passasse por isso.
- Você não o conhece.
- E precisa? Para de se enganar. Todo mundo sabe que ele é mulherengo e você foi a única que ainda não se tocou que ele fez com você o que fez com todas as outras... Usufruiu por um tempo e depois descartou feito um objeto. E outra coisa — ele parou um pouco tentando emendar o restante — Quem te garante que ele já não estava saindo com aquela menina enquanto ainda estavam juntos? Você mesma achou estranho esse namoro repentino. — ele dizia com tanta convicção que por muito pouco não me deixara levar —
- Eu achei estranho por N fatores, Gustavo. Diferença de idade — ia listando nos dedos para ele — Realidades muito opostas, pouquíssimas coisas em comum... Ele pode ter mil defeitos, mas infiel eu te garanto que não é.
- Eu não quero que a gente fique aqui mantendo contato com esse cara. Ele já te fez mal demais.
- E o que eu quero não é válido pra você?
Ele desviou nossos olhares e pareceu analisar com cautela a pergunta que eu havia feito, ele já devia saber que nossa relação estaria em jogo dependendo da resposta.
- Claro que sim, amor. Eu tô colocando a sua vontade muito a frente da minha, o que eu pretendo com essa conversa é te mostrar que você tem outras opções pra sua vida. Não tem que ficar fadada pra sempre a um emprego temporário e a um homem que não vai corresponder às suas expectativas como pai.
- Você tem se consultado com alguma taróloga e não me contou? — amparei as mãos na cintura e o fitei com os olhos semicerrados — Porque pra saber de tudo que vai acontecer na minha vida assim só pode ser isso.
Não me interessava mais o que ele tinha a dizer, dei meia volta e segui para o meu quarto; talvez assim ele entendesse de uma vez que já estava passando da hora de ir embora. Como eu já previa, ele foi me acompanhando chamando por mim diversas vezes.
- Marisa, me escuta — ele parou em frente a porta impedindo a minha passagem — Ok, eu me precipitei e não falei sobre isso com você na melhor hora. Mas olha — ele segurou meu queixo e sorriu — Eu posso pelo menos pedir pra que você analise com carinho?
Ele fez uma pausa esperando a minha reação, mas eu permanecia estática.
- Nós precisamos dar a resposta até semana que vem.
Não tinha essa de nós, essa era uma decisão que só caberia a ele e eu não precisaria nem pensar melhor a respeito para que desse um parecer. Me sentia exausta e era óbvio que quanto mais eu me justificasse mais aquilo iria render, não queria me precipitar demais e acabar o atingindo, então decidi fazer o que achava mais certo por hora.
- Gustavo olha só — me desvencilhei retirando sua mão de minha face — Eu realmente não esperava por tudo isso hoje, é informação demais. Eu acho melhor você ir pra sua casa e amanhã a gente fala sobre isso com calma.
Ele me analisou com um semblante vazio e parecia não compreender o por que daquela atitude; meu coração se partia por vê-lo assim, mas eu não tinha escolha.
- Você não quer que eu durma aqui hoje? — ele me questionou após um longo silêncio —
Evitei me dirigir a ele diretamente, seria covardia. Eu apenas neguei com a cabeça evitando fazer o mínimo possível de contato visual.
- Eu preciso pensar um pouco, Gu. Preciso descansar a mente. De verdade. — sorri de maneira genuína apenas para aliviar a tensão ali — Se importa?
Ele estava visivelmente sem jeito e se deu ao trabalho somente de concordar; depois se lembrou de pegar a carteira e as chaves que ele havia deixado sobre a mesa e se dirigiu até a porta da sala. Eu o acompanhava sem me atrever a dizer um A, não queria piorar ainda mais a situação.
Um beijo quase apático e um frouxo abraço foram o nosso último contato da noite, ele se despediu brevemente dando a deixa perfeita para que eu fizesse o que queria há tempos; eu precisava permitir que toda aquela frustração se esvaísse. A adrenalina de antes agora dava lugar à lágrimas que desciam desenfreadas pelo meu rosto afora, era uma sensação horrível de impotência se mesclando ao medo do desconhecido, ao receio de fazer mais uma escolha equivocada. Saí apagando todas as luzes pelo corredor até estar de volta ao meu quarto, minha cama me convidava dizendo que apenas ela me bastaria naquela noite.
Fui me encolhendo, encolhendo e me permitindo descarregar o que sentira. O egoísmo de Gustavo e a prepotência eram “qualidades” novas para mim e era difícil acreditar que aquele homem havia olhado no meu olho pedindo para que eu deixasse tudo por ele. Justo eu! Eu que sempre fui independente, que priorizei durante anos o meu trabalho. Como abriria mão disso pra viver um suposto conto de fadas? Eu estava imersa em um emaranhado de maus pensamentos, era como se eu temesse o meu futuro e reconsiderasse todos os passos que eu havia dado até aqui.
A certa altura aquele choro já não era mais minha principal preocupação diante do que veio depois, senti meu coração acelerado como nunca e em todas as vezes em que tentei buscar por ar eu falhava. Ótimo! Estava tendo uma crise de pânico às onze da noite e completamente sozinha... Eu realmente gostaria que meu corpo reagisse mas eu não saía do lugar, comecei a entrar em desespero e já duvidando da minha sanidade eu considerei fazer algo muito distante do que eu julgava como certo.
Miguel
Depois de vagar durante um bom tempo pelos canais da TV a cabo decidi que dormiria um pouco mais cedo do que o habitual naquela noite, não era algo muito corriqueiro mas eu estava bastante cansado e pretendia acordar por volta das sete no dia seguinte.
Senti meus olhos pesarem e soube que em poucos minutos meu corpo se relaxaria por completo. Ou talvez precisasse adiar um pouco; quando meu celular chamou pela sexta vez eu logo deduzi que provavelmente não se tratava de um engano, ninguém ligaria tão tarde caso não fosse importante. Já estava tão entregue ao cansaço que mal conseguia me localizar, saí tateando pelo escuro tentando me lembrar onde eu teria guardado o maldito celular.
- É óbvio! — me repreendi mentalmente —
Só poderia estar no bolso traseiro do jeans que eu havia usado durante o dia, já era quase um costume esquecê-lo ali.
- Alô — atendi sem muita empolgação passando a mão pelo resto em uma tentativa de espalhar o sono —
- Miguel... — eu reconheceria aquela voz embargada a quilômetros luz de distância —
- Oi — eu despertei em um piscar de olhos — O que aconteceu? Você tá passando mal? — meu nervosismo era tanto que sequer procurei escutá-la, apenas calcei os chinelos quase que no automático, como se soubesse que iria sair —
- Eu não tô me sentindo muito bem — era perceptível. E minha preocupação dobrou de tamanho quando a notei ofegante —
- Ma, eu vou te encontrar aí, tudo bem? — ela ficou em silêncio e eu interpretei como se fosse um sim — Você consegue esperar até que eu chegue?
Ela confirmou bastante monossilábica, parecia ter dificuldade até para formular frases mais longas.
Enquanto tentava acalmá-la ia vestindo de qualquer jeito a calça de moletom que achara primeiro a minha vista, não me daria ao trabalho nem de trocar a camiseta de algodão que estava usando para dormir.
Tentei usar de minha racionalidade para agir já pensando em não alarmá-la, mas não seria viável que eu chamasse uma ambulância. Conhecendo-a como eu a conhecia ela me mataria pela exposição e fora isso não tinha certeza se havia algum atendimento que chegasse antes de mim até a casa dela.
- Tenta se manter acordada, preciso que você abra a porta pra mim daqui dez minutos, ok?
Todos em casa já dormiam e não se fazia necessário que comunicasse a ninguém que estava de saída, apenas me lembrei de pegar as chaves sobre a mesa e de me certificar que estava com todos os meus documentos na carteira. Assim que cheguei até o carro avisei a ela que precisaria desligar, insisti para que se mantivesse atenta e apenas me lembrei de pedir aos meus protetores que cuidassem dela nesse meio período.
Nada fazia sentido, ela aparentava estar tão bem quando eu a vi que nem conseguia imaginar o que estaria causando todo esse transtorno. Aliás, por que justo hoje o imbecil do namorado dela não estava lá?
(...)
Era como se houvessem dias em que nada trabalhasse a favor e tive ainda mais certeza disso quando atravessei apressado aquele saguão para encontrar o elevador ocupado.
Não me lembrava a última vez que havia subido três lances de escada com tamanha agilidade, acho que ter diminuído consideravelmente o consumo de nicotina já vinha dando resultado. Parei em frente ao apartamento dela e sequer pensei em recuperar o fôlego, apenas afundei meu dedo naquela campainha insistente o bastante talvez para alarmar todos os vizinhos, mas não me importava.
Depois de algumas tentativas ela enfim me atendeu, seu rosto vermelho entregava que algo a tinha chateado o suficiente para que ela se rendesse à melancolia. Eu não soube exatamente como proceder e em um primeiro contato ainda não compreendia o que tinha de tão errado, quando pensei em fazer as perguntas que eu queria ela não me deu a deixa como era tão usual em nosso cotidiano no teatro. Marisa apenas se jogou em meus braços e ali repousou tempo o bastante para que eu perdesse a noção de tudo. Eu ainda não era capaz de esboçar alguma reação; ela me apertava quase em desespero e ao passo em que eu cedia aquele contato podia sentir o quanto o coração dela batia descompassado. Só conseguia pensar que aquele infeliz pudesse ter feito mal à ela, nunca a tinha visto tão vulnerável.
- Marisa — chamei por ela uma única vez — Vem comigo, vamos sentar um pouco. — ansiava para que ela ao menos concordasse e nada —
Percebi que suas pernas não se mantinham firmes, ela estava trêmula e eu procurei me manter calmo. Precisava de algum norte para descobrir como deveria agir.
- Melhor, eu vou te deitar na sua cama. — parecia o mais sensato a se fazer —
Envolvi meu braço em seu corpo enquanto tratava de fechar a porta com a outra mão. Fui a guiando até o quarto e aquele silêncio ainda me consumia por inteiro, mas felizmente ela aparentava estar menos agitada.
Marisa
Eu mal sabia o que se passava, nunca havia sido acometida por uma crise daquelas e por mais que eu já soubesse como proceder, parecia que a presença dele era a única coisa que me bastava agora.
Com os cuidados dignos de um enfermeiro ele auxiliou para que me deitasse e se sentou sobre o chão frio ao meu lado em seguida. Mesmo com todo aquele transtorno eu me esforcei o quanto pude para me concentrar somente em sua voz, ele falava comigo com uma suavidade que há muito eu não via e quando eu menos esperava senti nossas mãos se unirem uma a outra. Era como se ele quisesse se certificar de que eu continuaria ali.
- Respira — aos poucos eu recobrava minha consciência e no instante em que nos encaramos pude notar um misto de culpa e terror estampado em seu olhar — Puxa o ar e vai soltando aos pouquinhos, sem pressa. Eu não vou sair daqui.
O obedeci prontamente, a voz dele me acalmava e era como se todo o mal se esvaísse.
- De novo — ele repetiu o gesto para que eu o acompanhasse —
Após algumas poucas tentativas finalmente senti que havia me recuperado, o coração já não batia tão acelerado e consegui respirar sem dificuldades. Ele continuava parado ali, me analisando curioso e esperando por uma boa notícia.
- Acho que passou — eu sorri ao assistir uma sensação de alívio se apossar dele —
- Não faz mais isso, eu não tenho emocional e nem saúde mais pra lidar com essas situações.
Eu ri de forma contida, soltando o ar pelo nariz enquanto concordava com a afirmação dele.
- Mas você soube contornar muito bem.
- Eu tenho uma certa experiência, você sabe. Já salvei a Sofia algumas vezes. — ele fez uma pausa e me encarou desconcertado — Inclusive eu já fui culpado por algumas delas, eu... — a voz parecia não sair — Fui eu que te deixei assim? — os olhos dele brilhavam assustados —
- Claro que não. — percebi que nossas mãos continuavam unidas e rapidamente me soltei, não que estivesse ruim mas não queria correr o risco de causar algum mal estar — Por que acha isso? — consegui juntar forças até me sentar. A cabeceira da cama servia de apoio para as minhas costas —.
- Eu não devia ter vindo aqui, te causei problemas com o Gustavo né?
Eu me derreteria facilmente com aquela carinha, por Deus.
- Imagina, eu — o encarei intrigada — Você vai ficar sentado aí?
Ele sorriu reprimindo o riso que estava por vir e negou com a cabeça.
- Não, minha coluna já tá pedindo arrego. — ele disse enquanto se juntava a mim — Mas e então? Quer contar o que te deixou assim? — ele me fitava ainda preocupado —
Eu pensei durante algum tempo ponderando se Gustavo merecia ser xingado por ele; sinceramente? Sim. Mas eu não conseguiria dar o braço a torcer deixando nas entrelinhas que aquele relacionamento tinha sido uma péssima ideia.
- Muito estresse acumulado.
- E nada em específico te irritou? — ele não desistiria pelo visto —
Sim, dois homens que dividiam o meu coração nesse exato momento.
- Não — sorri forçadamente — Eu tive um desentendimento com o Gustavo, mas foi coisa boba.
Quando dei por mim já havia saído, ele me analisou atônito e pareceu se conter para não soltar o que de fato pensava sobre tudo.
- Esse cara tem juízo, Marisa? Olha o jeito que ele te deixou — ele gesticulava alterado — Com o conhecimento que ele tem já era pra saber que no primeiro trimestre de gravidez o cuidado tem de ser redobrado, caramba. — ele elevou ainda mais o tom de voz — E se tivesse acontecido o pior? — ele pareceu repreender aquele pensamento enquanto balançava a cabeça — Agora ele vai me ouvir.
Ele era impulsivo e aquele lado eu já conhecia muito bem, ele ameaçou levantar e eu me reservei apenas a agarrar seu braço no automático.
- Para, não vai fazer nada. — eu implorei temendo que entrasse por um ouvido e saísse pelo outro. Ele era igualzinho a uma criança teimosa quando queria — Eu vou conversar com ele amanhã, fica calmo.
Pude sentir sua tensão de longe e o assistia conflitar todos os seus impulsos enquanto ele mexia sem parar a perna esquerda. Ele se manteve quieto durante um bom tempo e depois de me analisar de cima a baixo, se levantou indo até a porta.
Miguel era assim. Quando estava a ponto de explodir ele carecia de um pouco de espaço, ou de achar algum meio para se distrair e assim reprimir seus impulsos. Um silêncio tomou conta de tudo e eu jurava que ele tinha ido embora, só mudei de ideia quando percebi uma movimentação em minha cozinha. Ouvi as portas de meu armário se abrindo e fechando uma a uma e nem passava pela minha cabeça o que ele estaria pretendendo.
- O que você quer? — disse alto o suficiente para chegar até ele —
O ouvi abrindo as gavetas em conseguinte, aparentemente ainda não havia encontrado o que queria.
- Aquela porrada de chá que você trouxe de Trancoso. Não é possível que já acabou.
Eu tinha ouvido bem? Ele ia fazer um chá para acalmar os ânimos? Sinceramente ainda não compreendia quais eram as intenções dele mas já estava tão confortável ali que faltava coragem para ir atrás.
- Eu acho que guardei dentro de uns potinhos — fiz um pequeno esforço tentando me lembrar exatamente onde — Nesse nicho ao lado da geladeira.
Tudo ficou quieto de novo; ele sumiu por lá durante uns dez minutos para depois retornar ao quarto com uma xícara enorme nas mãos.
- Eu acho que nem é bom você tomar medicação assim sem orientação — ele sentou-se na ponta da cama ficando de frente para mim — Alfazema vai te ajudar a dormir. — ele afirmou estendendo a mão —
Tentei insistir de todas as formas que aquilo não se fazia necessário e que as chances de que ficasse enjoada eram altíssimas, mas ele estava irredutível; enquanto não peguei aquela maldita xícara ele não se contentou. Acho que havia me esquecido de como eu adorava ser cuidada por ele... Enquanto ingeria a bebida eu me divertia ao notar que ele não tirava os olhos de mim, como uma mãe se certificando de que o filho comeria todo o jantar.
- Acho que não é bom ficar me estressando assim.
- Nem um pouco, isso...
- Vai que passa pra ele — eu o interrompi fazendo com que ele se confundisse; tomei o último gole do chá e sorri irônica — E ele nasce com o seu gênio.
Miguel
O clima descontraído que havia se instaurado entre nós se intensificou ainda mais após aquele comentário, rimos em uníssono. Não saberia descrever a estranheza daquele momento entre nós, mas eu me sentia tão pleno e feliz por estar ali por ela. Justo depois de uma conversa tão impactante com Laís, parecia até que aquilo estava programado para acontecer.
Eu sei que não era suficiente e ainda tinha um longo caminho a trilhar até que cumprisse dignamente o meu papel de pai, mas eu nunca havia cuidado de uma mulher grávida e eu me sentia útil afinal. Estar ali era bem diferente de ir a farmácia comprar o que ela precisava, ou mesmo de ir como acompanhante à clínica.
- É, outra Sofia... — semicerrei os olhos fazendo uma careta — Eu envelheço antes da hora.
Ela riu como nunca me fazendo gargalhar também.
- Você já pensou em algum nome?
Eu me direcionei a ela engatando um assunto no outro. Ia além de curiosidade, fazia tempo que queria perguntar e não surgia uma brecha. Ela pareceu intrigada e foi bem direta.
- Não. A gente ainda nem sabe o que é.
Eu dei de ombros e a encarei com ternura.
- Mas nada impede de já ir pensando.
Eu nem estava tão interessado quanto aparentava, talvez aquilo fosse só mais uma desculpa pra ficar ali junto dela mais um pouco.
- Eu juro que não tenho nada em mente. Até porque — ela fez uma pausa me entregando a xícara vazia — Isso é algo que a gente precisa decidir em conjunto.
Podia ser só uma observação boba, mas ouvir aquilo me fazia pensar no quanto ela era diferente de outras mulheres em vários aspectos. Eu adorava o nome da minha filha e achava que era perfeito pra ela, mas a mãe dela nunca nem perguntou o que eu pensava sobre. Foi uma escolha que não participei.
- Mas por que está dizendo isso? Você tem algum favorito? — ela me tirou do transe fazendo com que nossos olhares se encontrassem de novo —
- Heitor. — eu assistia a reação dela torcendo para que fosse positiva — Era o nome que eu queria que a Sofia tivesse se fosse menino.
- É bem bonito mesmo. — ela afirmou com a cabeça — Mas e se for outra menina?
- Não sei, talvez Elisa ou Amanda.
Dessa vez me diverti ao assistir a careta que se formava em seu rosto.
- Tudo bem, acho que desses você não gosta tanto assim.
Ela concordou sorrindo
- Eu pensei em colocar o nome do meu pai, mas acho que não seria justo com o seu.
- Teófilo? — mantive minha testa franzida demonstrando o descontentamento — Entre esse e Edmo eu juro que não sei por qual dos dois ele nos odiaria mais.
Marisa nem quis manter a pose desta vez, sua gargalhada preencheu o quarto me convidando a fazer o mesmo.
- Não, bobo — ela desferiu um tapa em meu ombro — Antônio. Primeiro nome dele.
- Ah sim — eu concordei com ela me lembrando de algo esquecido — Antônio é um clássico.
- Agora se for menina — ela apertou os olhos enquanto olhava para o canto da parede, assim bem pensativa mesmo — Bárbara! — ela disse convicta — Bárbara ou Cecília.
- Nem pensar. Nome de ex.
- As duas? — ela questionou com os olhos esbugalhados —
Eu apenas gargalhava, ela me divertia com tão pouco que só agora eu me lembrava do porque sofrera tanto com sua ausência nos primeiros dias.
- Bárbara sim. Cecília foi um rolo lá na Ilha do Governador ainda.
- Ah mas se for assim no final a gente só vai ter umas duas opções. Você já foi do A ao Z.
Eu até tentaria achar um argumento para me defender, mas pensando bem ela tinha uma certa razão.
- A gente vai encontrar um meio termo até lá. — teríamos bastante tempo pra isso —
Eu estava realmente animado com as proporções daquele assunto e poderia passar horas e horas ali planejando o que ela quisesse, mas a hora passava rápido e eu não poderia mais adiar a minha saída. Quando as coisas ficaram silenciosas novamente eu aproveitei o ensejo.
- Como eu posso me certificar de que você já tá melhor?
- Você já vai? — ela se virou para mim com feições de menina —
Golpe muito baixo.
- Eu preciso ir — uni os lábios fazendo um bico — Meu voo sai as oito.
Marisa
- Eu posso pedir pra Paula dormir aqui com você?
Ele fez aquela pergunta se referindo à minha vizinha do apartamento ao lado. Era uma jovem de seus vinte e seis anos que volta e meia me fazia companhia madrugada afora quando o namorado viajava a trabalho.
- Não sei se ela já chegou em casa.
De fato não sabia, não a via desde cedo e em uma breve conversa pela manhã ela havia me dito que iria a um jantar naquela noite.
Ele caminhou até a janela do quarto colocando metade do corpo para fora.
- É, tá tudo apagado lá mesmo.
Miguel dava voltas de um lado ao outro em uma batalha interna para tomar alguma decisão, mais do que isso eu sentia como se faltasse coragem para me deixar ali, sem querer ser prepotente nem nada. Eu no auge de minha impaciência propus o inimaginável.
- Miguel.
Ele parou por um instante e me encarou curioso.
- Fica aqui até eu dormir.
Apesar da urgência daquele meu pedido eu já me sentia bem e definitivamente não precisaria de uma babá para me fazer companhia, mas eu não seria capaz de deixá-lo sair daqui sem que antes eu pudesse me lembrar pelo menos por um segundo qual era a sensação de tê-lo tão perto. Eu sabia que as chances de que ele cedesse eram quase nulas, mas algo me motivava a tentar.
- Você — sua voz falhava como nunca — Quer que eu passe a noite lá no quarto de hóspedes? Se quiser eu...
Ele me fitava atônito enquanto eu apenas balançava a cabeça discordando totalmente do que ele estava propondo.
Aquilo não estava certo é verdade, mas querer forçar um casamento só pra me afastar dele também não era. A consciência não pesaria tanto assim.
Não havia nenhuma má intenção e menos ainda alguma conotação sexual, eu só queria senti-lo. Queria sentir que pelo menos por uma noite nós nos pertencíamos de novo, como nos velhos tempos.
Me reservei a ceder um pouco do espaço na cama e me embrenhei por debaixo do edredom, a essas alturas só pedia aos deuses para que ele entendesse o recado e não reagisse mal.
Ele parecia submerso em um dilema ferrenho e quando eu já estava a ponto de desistir pedindo perdão pela péssima ideia, ele foi até o interruptor assim mantendo somente a baixa luz do abajur acesa. Depois foi se aproximando da cama feito um dois de paus, como se o corpo não obedecesse mais a nenhum estímulo.
Após toda aquela incerteza ele se decidiu enfim, foi se aconchegando ao meu lado até colocar a cabeça repousada no travesseiro. Nossos olhares sequer se desgrudavam um do outro e o único som que se podia ouvir era o de nossas respirações trabalhando em conjunto, acho que ambos ansiávamos para que alguém dissesse qualquer coisa que se fizesse necessária para amenizar um pouco a inibição que insistia em participar do momento, mas acho que justamente esse silêncio era capaz de expressar tudo o que nos rodeava agora.
Eu precisava ouvir dele, qualquer comentário bastaria para que eu me decidisse por colocar um ponto final em meu atual relacionamento; mesmo que não estivéssemos pré destinados a passar nossa vida juntos, eu já sabia que nem se eu quisesse passaria muito tempo longe dele. Meu parceiro dos palcos, futuro pai do meu filho... Como admitir que eu o queria além de amigo sem parecer patética demais? Sem que muita gente saísse machucada daquela história?
Fechei os olhos de maneira
involuntária quando senti que a emoção me acertaria em cheio de novo, talvez assim pegasse no sono mais depressa e evitaria pensar em como eu gostaria que fosse diferente.
Senti que ele havia se mexido um pouco e quando já esperava que aquela fosse a deixa para ir embora, ele apenas puxou um pouco mais o edredom cobrindo meus braços antes expostos ao frio do ar condicionado. Talvez não fosse muito, mas só assim para me lembrar do quanto sentia saudade daquele jeitinho torto e até meio atrapalhado de cuidar de mim.
- Que bom que você veio — abri os olhos e disse em um sussurro, não queria estragar o momento —
Ele sorriu contidamente apenas confirmando com a cabeça.
- Eu disse que viria.
(...)
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My Fair Ladies
Romans"Fundamental é mesmo o amor é impossível ser feliz sozinho" este trecho eternizado por Tom Jobim jamais poderia ser aplicado à vida de um dos protagonistas dessa história; Miguel Falabella. Um carioca desapegado, de alma leve e faceiro que não troca...