Capítulo XV- Semelhança

7.2K 722 70
                                    


Toda esta ansiedade não deveria está aqui, mas está. Quase acabei com minhas unhas roendo-as copiosamente enquanto aguardava o início do relato de Virgínia  , preciso saber mais sobre Lúcio Sandoval, enxerga-lo através da íris de alguém que não o vê como um monstro.

— Obrigada! — Agradeço-a, apanhando a xícara de café que tão gentilmente me oferece.

Com uma calma admirável, a prestativa senhora empilha alguns papéis espalhados pela mesa.

— Fico feliz por ter vindo me ver antes de ir embora. — Metade dos documentos são colocados numa pasta vermelha, enquanto os outros permanecem sobre a mesa. — Gosto deste cantinho e da tranquilidade intrínseca ao meu cargo. Só que às vezes a solidão bate forte, sabe? É difícil alguém descer até aqui.

— Entendo. Imagino que não seja fácil passar o dia inteiro aqui.

Sorvo um gole do café e olho a minha volta. O almoxarifado não é um ambiente desagradável, tem ar-condicionado, uma cafeteira, as poltronas são confortáveis, e embora haja uma infinidade de materiais, tudo está devidamente organizado em inúmeras prateleiras. No entanto, é um lugar solitário e sem janelas para área externa, o que tornaria qualquer pessoa claustrofóbica.

— Sim, mas já me habituei, afinal são quase 10 anos.

— Eu no seu lugar não me acostumaria nunca, adoro ver gente, conversar com as pessoas.

— Percebi que é uma menina muito sociável... Ao contrário de mim, que sempre fui introspectiva. — Ela coloca o último grupo de papéis numa pasta azul e se serve de café. — Desde que enviuvei minhas filhas me infernizam a vida com a história de que devo encontrar um novo amor, mas não é o quero.. — Vejo-a esboçar um sorriso enorme e adicionar umas gotas de adoçante em sua bebida. — Só que é sempre bom conversar com alguém, principalmente uma menina agradável como você.

— Gentileza sua, mas agradeço. Quantas filhas tem?

— Tenho três. Dafine, Mirella e Deborah, todas adultas.

— Casadas?

— Só a Deborah, as outras ainda moram comigo.

Durante 15 minutos ouvi Virgínia discorrer sobre as filhas. Dediquei real atenção a cada uma das palavras ditas por ela, mas no fundo, confesso que ansiava pelo momento em que tocaria no nome do meu chefe, afinal, nos últimos dois dias ele tem sido o pilar de toda a minha curiosidade. Para minha alegria, este tópico da conversa logo vem a tona, e embora não entenda completamente a razão disso, me flagro com os ouvidos apurados e o coração batendo forte.

— E o Doutor Lúcio tem grande participação nesta vitória. — Afirma Virgínia, referindo-se ao episódio do sequestro e resgate de seu neto.

— Desculpe, mas o que ele tem a ver com isso?

— Não fosse pelo apoio dele nunca teríamos recuperado Calebe.

— Por que?

— Bem, meu ex genro levou o garoto para França, que é onde vive a família dele. Não tínhamos condições financeiras para buscá-lo tão longe e estávamos sofrendo muito. — Ela faz uma pausa para um gole de café. — Quando a e senhora Sandoval era viva, eles costumavam trazer o filho para brincar com o Calebe, uma vez que eu também o trazia bastante e os meninos tinham praticamente a mesma idade. Numa destas visitas, o pequeno não viu meu neto e perguntou o que havia acontecido, acabei falando sobre o sequestro, embora soubesse que não era assunto para uma criança de 4 anos. Meia hora depois, Lúcio apareceu, não para me repreender por ter pertubado a cabecinha de sua criança com este assunto, mas para oferecer ajuda.

— Então ele arcou com os gostos da viagem? — Por mais que me esforce, não consigo associar tal ato ao ogro que me tratou feito um animal rastejante.

— Fez mais do que isso, nos cedeu seus advogados para derrubarmos a guarda compartilhada entre minha filha e o calhorda do ex marido. Graças ao doutor Lúcio, hoje vivemos em paz.

— Realmente você tem todos os motivos do mundo para ser grata. — Levo a xícara aos meus lábios e tento sorver mais um pouco do café, porém, o nó em minha garganta me impede de fazê-lo. — É uma pena ele ter mudado tanto.

— Mas ele não mudou, Esmeralda. Só está sofrendo, deve se sentir acuado como um bicho ferido.

— Desculpe, Virgínia, mas eu discordo. Se todos os que sofrem resolvessem descontar as mágoas no próximo, o mundo seria o prelúdio do inferno. — Fecho os olhos e suspiro profundamente, sentindo uma pontada fina no peito. — Você não faz idéia de como esse médico tem me tratado desde que colocou os olhos em mim.

— O que ele tem feito de tão grave?

De forma resumida, mas sem ocultar os momentos mais difíceis, coloco-a a par de tudo o que aconteceu, de todos os absurdos que tive que ouvir do meu chefe até o presente momento.

— Engraçado... — Ela parece perdida, seus olhos passam a impressão de estarem analisando algo além do mundo concreto. — Eu sei que o doutor Lúcio se tornou uma pessoa difícil de lidar, mas isso que você está falando é demais.

— Eu que o diga, só que infelizmente é o que tem acontecido. Esse homem é um déspota, preconceituoso, talvez até mal caráter.
Ela sacoleja a cabeça loira em negação.

— Olha Esmeralda, já ouvi algumas pessoas falando do péssimo gênio dele, muitas na verdade. Eu mesma cheguei a presenciar um desses ímpetos de arrogância que ele costuma ter. Porém, isso que me contou não... — Ela para a narrativa de repente, seus olhos negros se fixam em mim e a testa enruga levemente. — Acho que ele te trata assim porquê você se parece com ela.

— Com quem?

— Com a falecida.

— Sério? — Pergunto, intrigada com a comparação.

— O formato de seu rosto,  nariz e lábios são muito parecidos com os traços da doutora Aurora. Muito mesmo, é impressionante.

A constatação feita por Virgínia me pega de surpresa e ao mesmo tempo, atribui certo sentido as atitudes de Lúcio. Se eu me pareço tanto assim com Aurora e ela de certa forma é responsável pelo  calvário que tem sido a vida do médico, é natural que eu seja vista como o reflexo de toda essa dor.

Estou sem o ânimo necessário para encarar um ônibus lotado agora, e como a distância entre o Sandoval e a casa de repouso não é tão grande, decido solicitar um carro de aplicativo. No caminho, concentro-me em destrinchar cada uma das palavras ditas por Virgínia e nunca vi tanto nexo em uma afirmação como a que foi feita por ela. Lúcio me condena por eu ser parecida com aquela que foi seu anjo e posteriormente, o demônio que o oprime já há tantos anos. O problema é que se essa for realmente a razão de seu tratamento comigo, não há nada que possa ser feito para mudá-lo, a menos que eu me torne... Sacudo a cabeça e rompo aquele pensamento insano antes que ele se solidifique em minha mente.

Quando o carro estaciona em frente a clínica, sinto meu coração se apertar e as mãos transpirarem. Os segundos que antecedem meus encontros com papai são sempre tensos, pois nunca sei o que esperar, qual versão de Antônio Monserrat irá me receber.

Preencho um pequeno formulário e sou acompanhada por um enfermeiro até o jardim onde meu pai está. Avisto-o de longe, sentado na grama, olhando para o céu, a visão me comove, pois dói profundamente vê-lo numa situação tão lamentável. Esse homem sempre foi meu herói, meu porto seguro, e agora que está perdido na própria mente, não tenho como resgatá-lo.

Aproximo-me lentamente, tomando cuidado para não assustá-lo, pois da ultima vez em que estive aqui o peguei tão desprevenido que precisou ser medicado após o susto.

— Oi! — Saudo-o, depois que seus olhos se voltam para mim. — Posso me sentar com o senhor?

— Claro, mocinha! Entre a porta está se aberta. — Mais uma vez eu não sou reconhecida.

Finjo transpor uma porta, pois alguns psiquiatras já admoestaram minha insistência em forçá-lo a se lembrar de mim. Estou compreendendo aos poucos que para uma pessoa com Alzheimer, as peças pregadas pela mente confusa são a realidade.

Lúcio- O Renascer De Um CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora