Capítulo XVII- Mar de esquecimento

6.3K 682 36
                                    


Ajudo-o a se levantar e vou com ele até a outra extremidade do jardim, onde há algumas mesinhas de mármore dispostas bem longe uma da outra.

— É a nova enfermeira? — Pergunta papai, deixando claro que já saiu de seu devaneio, mas ainda não me reconhece.

— Bom, eu... — Abaixo os olhos e suspiro profundamente, é massacrante vê-lo me tratar como uma desconhecida. — Sim, isso mesmo. — Minto, não encontrando outra forma de continuar ao lado dele por mais alguns minutos.

— Estou me sentindo muito bem hoje. Não me fará tomar mais remédios, né?

— Não estou aqui para isso, não se preocupe. — Alcanço sua mão e a levo aos lábios, sentindo a emoção batendo forte no peito. — Só quero conversar com o senhor.

Ele me encara demoradamente, o cenho franzido acentuando as rugas em sua testa.

— Acho que não é uma enfermeira nova, mocinha... Seu rosto me é familiar.

Mesmo não significando muita coisa, as palavras dele aquecem meu coração, pois é a primeira vez em muitos meses que isso acontece. Sempre que venho aqui, sou confundida com alguma figura de um passado distante, ou ele acredita que eu seja uma enfermeira novata, nunca enxerga em meus traços um rosto familiar, como o que acaba de acontecer.

— Está dizendo que o faço lembrar de alguém?

Ele me analisa por mais alguns segundos. Enquanto tenho o rosto minuciosamente observado por aquele par de olhos castanhos e fatigados, não posso deixar de perceber um misto de sentimentos girando freneticamente em meu coração, só Deus sabe quanto anseio pelo dia em que ele me reconhecerá, mesmo que isso dure apenas alguns instantes, serão os instantes mais felizes e completos de toda a minha vida.

— Desculpe, acho que me enganei novamente, tenho certeza de que nunca a vi antes.

Tais palavras soam mais cortantes do que a espada de um soldado romano. Mais uma vez tenho a esperança substituída por um punhado de ácido que acerta em cheio as três vertentes do meu ser, corpo, alma e espírito. Talvez você não entenda o que estou sentindo e enxergue exagero em minhas palavras, porém, tente fechar os olhos e se visualizar na situação pela qual estou passando. Antônio Monserrat sempre foi o chão sob meus pés e o teto sobre minha cabeça, mais do que isso, ele era a parte do meu universo não ocupada por dona Teresa. Foi na mão dele que me apoiei quando dei os primeiros passos, ele me ensinou a andar de bicicleta, me ajudou a levantar sempre que a vida me derrubava, e principalmente, trilhou primeiro todos os caminhos que me levaram ao ser humano que sou hoje. E por parte dele, sei que as coisas não são muito diferentes, ao menos não eram quatro anos atrás. Eu sou a garotinha que ele anininhava nos braços quando chorava, que viu crescer, a filha pra qual deu a mão na valsa de debutante, sou sua pequena e iluminada pedra preciosa, como ele reiterava sempre que alguém me fazia sentir menos que um cascalho. Agora no entanto, tudo isso se desfez como fumaça no céu, a minha lembrança foi cruelmente apagada de sua memória. Para meu pai, é como se sua filha adorada nunca tivesse existido, nem mesmo em sonhos, e esta constatação me machuca profundamente.

— E então... Pode me dizer como tem sido seu dia? — Pergunto, lutando para não expôr na voz toda a minha dor.

— O meu dia? — O olhar melancólico vagueia perdido pelo ambiente, como se ele quisesse encontrar nestas árvores e pacientes a resposta para a pergunta. — Desculpe... — Sua cabeça abaixa, mostrando o quanto esses momentos de confusa consciência são vergonhosos para ele. — Eu não sei dizer.

— Não se preocupe... Isso já não tem a menor importância. — Conforto-o, fazendo carinho no dorso de sua mão. — Diga-me apenas se está bem de saúde, sente alguma dor física?

Lúcio- O Renascer De Um CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora