O falso coletivismo

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 Uma ação, feita por uma mulher, deve representar o agir de todas as mulheres. A responsabilidade da liberdade exige que um ato individual carregue em si, necessariamente, a expressão de todo agir humano. A filosofia existencial insiste na ideia de que todas as mulheres espelham a necessidade humana e possuem a liberdade e dever de usarem essa necessidade para construírem- e recriarem- suas próprias subjetividades. Mas essa liberdade só se dá com e através do outro, assim, o outro se torna sua condição de existência, sua essência. E, como para Sartre Ser é ser livre, e ser livre é Ser, não há liberdade sem que haja o outro.

O outro que faz do sujeito objeto, e na dança dialética, reconstrói e desfaz, molda, multiplica e destroça o que o Ser quer ou ousa desejar. Mas a mulher que não se deixa passiva responde, e se apropria, desmonta e recria, e é nessa brincadeira de tira e põe, que o Ser é livre para se formar. Mas se a subjetividade, a alma, o que temos de mais precioso e único é condição essencial do outro, este não deveria assumir o mesmo valor?

A jovem menina que anda de bicicleta e se movimenta pela cidade não depende tanto dos vendedores ambulantes quanto dos seus pais para existir? Ou seria um absurdo sugerir tal ideia? Acontece que o costume de nossas vidas diárias mascarou a natureza organicista e coletivista do agir humano. Cercados por nossas próprias e agradáveis formas, recriamos em série universos próprios, paraísos artificiais que ocupam nossas mentes com nossos próprios egoísmos. O problema do dia é o trabalho de epistemologia que devo apresentar, e não o tiroteio abusivo na comunidade não tão distante, por que desse tiroteio se ocupam as formas próximas, e dessa experiência só me compadeço enquanto absorvo a notícia. A rotina naturaliza esse processo, e por décadas a mulher vive como se todo o universo válido e real estivesse ao alcance de suas mãos. O antropocentrismo contemporâneo torna o outro menos que uma opção de desejo. 

Mas a natureza permanece intacta em sua forma, e, uma hora ou outra, a liberdade se faz ouvida, mesmo que de forma catastrófica. Uma pandemia desafia a capacidade de sobrevivência humana, e o outro se mostra, como única opção condição de existência . Em situações extremas, as fronteiras artificiais que regem a sociedade são ultrapassadas. O público e o privado, a diferença de classe social ou faixa etária como privilégios, o direito de ir e vir, tantas são as formas de comportamento que se desmontam, revelando frágil e pueril a estrutura a qual agarramos e cravamos verdades.

Acontece que, é agora, no isolamento, que se pode ver o valor do outro. Que se pode ver como o sistema capitalista discute mais os números da bolsa de valores que de leitos nos hospitais. Que o egoísmo faz com que uns acumulem e outros passem fome, que a poucos seja dado o peso da escolha de quem vive e quem morre. É nesse sistema de caos e injustiça que somos forçados, mais uma vez, a encontrarmos nossa maneira de existir. E, como que perdidos, matamos e excluímos o nosso único caminho para a liberdade.

Mariposas por todos os ladosWhere stories live. Discover now