Natal

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Você me perguntou por que não quero ver sua família no domingo. Seus pais estarão lá, seus avós, os pais da namorada do seu irmão, os casais de amigos, as tias que falam alto. Você me perguntou por que não posso ir, e não acho que você possa entender. Não acho que entenda, por mais que seja gentil, bondoso e sincero, jamais entenderia.

Então precisamos fugir, fugir e chamar de férias, ir para longe, fugir das lembranças, das comidas, das pessoas e, principalmente dos lugares. E por isso não montamos árvore esse ano, nem colocamos luzes, nem compramos presentes. E concordamos em silêncio, em silêncio aceitamos nossa dor. Porque dói tanto, tanto. Que você não entenderia.

Não entenderia como é, pela primeira vez, não ficar animada com essa data. Não saberia como é não ter família para passar, não saberia como é ter vergonha das suas lembranças e inocências. Por mais que tentasse não saberia como nossas mãos estão cansadas de escalar carregando pedras na mochila, não saberia como é ter que se agarrar nos cabelos, uns dos outros, e puxar até que as raízes sangrem, só para não encostar os pés no chão. Não saberia como é não ter casa, ou calor, ou certezas.

E, digamos que eu queira ir, que decida num impulso, o que eu vestiria? O vestido do ano passado agora é folgado demais, vendi meus sapatos de flores, e como andar num carro sem gasolina? E você diria, eu te levo, te compro o vestido mais lindo. E o que vestiria lá? Com que olhos veria esse seu mundo que já pareceu tão meu um dia? Como eu sorriria para eles, os homens casados com amantes? Ou como conversaria com elas, as meninas que usam batom vermelho e não se preocupam com os copos marcados? E se, ainda sim, conseguisse, como comeria? Como sentaria junto de todos estranhos e engoliria, cada mágoa, nojo e mentira disfarçado num pedaço de carne? 

Eu teria que sorrir, passar a mão no cabelo, pedir licença e correr para o banheiro. Eu choraria, e molharia meu rosto, e voltaria. Como já fiz tantos outros dias. E vomitaria tudo depois, porque meu corpo não consegue, ele se cansou do intragável que o fiz engolir ano e ano. Eu vomitaria e no fim, ainda estaria só. E todos os barulhos ainda são ruídos, e todas as promessas ainda são propagandas, e o único lugar seguro é aquele em que não estou. 

Então você me pergunta porque não posso ir domingo a noite, e, por mais que eu tentasse te explicar, você não entenderia. E ainda fico feliz por isso. 

Mariposas por todos os ladosWhere stories live. Discover now