Sr. Herrera

561 48 12
                                    

SEGUNDA SESSÃO, SR. HERRERA SOZINHO

O sr. Herrera entra no consultório e se senta. Desculpa-se pelo atraso, embora não haja atraso nenhum. O homem parece cansado. Confiro minhas anotações: o sr. Herrera tem uma empresa de construção. Internacional. Viaja muito. Sem filhos. Uma vida agitada.
Mas seu cansaço não parece apenas físico. O olhar sugere que algo mais está consumindo sua energia.

Como de hábito, remexo nos meus papéis, esperando que ele relaxe. Ofereço café, chá etc. Ele agradece e depois saca do bolso um cantil de prata. Com um sorriso no canto dos lábios
— desses que deixam as mulheres derretidas por dentro —, pergunta: "Se incomoda se eu...?"

Olho para o relógio de parede. Ainda nem é meio-dia, mas o gesto me pareceu perfeitamente natural para o sr.
Herrera.

"Como diz a canção: 'Em algum lugar do mundo já passa das cinco...'", ele brinca.
Faço uma anotação.

Alfonso Herrera é mais afável do que se mostrou na primeira sessão. Além disso, pareceu-me um homem gentil, confiável e equilibrado — como aqueles maridos que aparecem nos comerciais de seguros. Esse sr. Herrera me parece... sei lá, diferente. Tem um pouco de James Bond — ou talvez até de Frank Sinatra.

Tem aquele charme do célebre "Rat Pack": Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Jr.
Casualmente dá um gole na bebida, e só então percebo que não está usando a aliança no dedo. Confiro minhas anotações. Não há dúvida de que usava a aliança quando esteve no consultório pela primeira vez, na companhia da mulher.

Pode parecer um detalhe sem importância. Mas é algo que costumo reparar quando recebo maridos e mulheres. Uma aliança de casamento é mais que um símbolo. Tem um valor muito grande para a maioria das pessoas.
Cogito se o sr. Herrera tem um bom motivo para não estar usando a sua. Estou certo de que vem por aí uma história bem interessante.
Ligo o gravador, esperando descobrir do que se trata:

- Me diz uma coisa: por que resolveu voltar aqui sozinho? - questiono.

- Na verdade, não sei. Não creio que tenhamos um problema. Quer dizer, amo minha mulher, minha casa, nossa vida...

NOTA: Ele não termina a frase. Há um grande "mas" pairando no ar, esperando para ser dito. No entanto, ele aparentemente não sabe como continuar.

- Mas...

NOTA: O sr. Herrera assume um ar distante. Decerto está mentalmente revivendo cenas difíceis de sua vida. Algo definitivamente o perturba. Mas está claro que não sabe como falar sobre o assunto. Isso é muito comum, é claro, entre meus pacientes do sexo masculino.
Então retrocedo e tento uma nova abordagem.

- Procure relaxar, sr. Herrera. Estamos aqui para conversar, só isso. Não há respostas certas ou erradas. Fale um pouco de sua mulher. O que o deixou atraído por ela logo no início?

- Ela era encantadora... instigante... misteriosa... - ele sorri.

NOTA: Ótimo. Ele está se abrindo.

- E hoje?

NOTA: O rosto do sr. Herrera assume uma expressão sombria, os olhos se fecham.

- Nenhum mistério - ele diz, simplesmente.

NOTA: Espero, paciente, que ele diga mais alguma coisa. Mas simplesmente olha para mim e sacode os ombros. Como se dissesse: "É só isso." Brinca com o cantil, dá mais um gole na bebida (seja lá qual for) e depois baixa os olhos, conformado com sua decepção. Percebo que terá dificuldade para se abrir. Na verdade, estou con victo de que será preciso dinamite para fazê-lo continuar a se abrir. Reflito, tamborilando a caneta sobre a mesa.

- Vou lhe passar um pequeno dever de casa.

NOTA: Ele olha para mim como se dissesse: "Está gozando com a minha cara, não está?"

- Nada complicado, eu garanto. Quero que vá para casa e escreva sobre os seus sentimentos.

NOTA: O sr. Herrera cai na gargalhada, como se eu tivesse acabado de contar uma piada hilariante numa rodinha de clube. Depois se recompõe, visivelmente envergonhado.

- Não está falando sério, está? Está. Bem... Olha, doutor, escrever não é o meu forte. Meu negócio é ação. Tenho uma construtora — já lhe falei sobre isso, não falei? Além disso, ando sempre muito ocupado. Estou com esse projeto em Atlanta, um pepino atrás do outro.

- Compreendo. Mas não precisa se preocupar.  Não se trata de uma redação para a escola. Não é necessário caprichar na gramática. Nem mesmo terminar as frases. É apenas um exercício. Uma experiência, digamos assim. Não precisa mostrar a ninguém.

- Ninguém?

- Ninguém - lhe garanto.

- Nem mesmo... pra ela?

- Pra sua mulher? Não, não precisa mostrar a ela. Nem a mim. Claro, pode mostrar a mim, se quiser. Mas o mais importante é que você se sinta livre para escrever sobre qualquer coisa. Para ajudá-lo a descobrir exatamente o que o está perturbando. Às vezes, para conhecermos nossa própria história, precisamos contá-la a nós mesmos.

NOTA: O sr. Herrera leva o cantil à boca mais uma vez. Parece des confiar que eu esteja contando os seus tragos. Rapidamente, tampa o gargalo e guarda o frasco no bolso do paletó.

-?Tudo bem, então - da de ombros rindo como se não estivesse preocupado - Que mal pode haver nisso? Vou pagar pra ver o que acontece. Por que não? Afinal, o senhor deve saber o que está fazendo, certo?

- Excelente - digo.

- Mas não estou prometendo nada - ele insiste em deixar claro.

NOTA: O sr. Herrera se apressa em sair. Aperta minha mão como se fôssemos velhos amigos de escola. Atabalhoado, anda em direção à porta. Depois pára. Vira-se para mim.

- Humm... Doutor?

- Diga.

- Bem, é que... como devo começar?

- Que tal começar pelo começo? Tente se lembrar de como conheceu sua mulher, dos motivos que o fizeram se apaixonar por ela...

- Ótimo. Isso mesmo. Então, tchau.

NOTA: O sr. Herrera sai pela porta como se a sirene da escola tivesse acabado de soar. Faço uma anotação e balanço a cabeça.

Fico pensando se voltarei a vê-lo.

Mr & Mrs Herrera Onde histórias criam vida. Descubra agora