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ALFONSO

Pouco antes do amanhecer, morrendo de fome, desci até o que ainda sobrava da nossa cozinha. A geladeira estava bem vazia; a caixa de cereais, cheia de furos. Infelizmente, nem a torta de limão havia sobrevivido. Mas eu estava acostumado a improvisar.

Como em Bogotá.

Assoviando baixinho, peguei o que precisava no cesto furado e logo preparei uma salada de frutas que faria bonito em qualquer hotel estrelado do planeta.

Quando levantei os olhos, vi Anahí sorrindo para mim no vão da porta.

Ela estava linda... Tão doce, tão tocável... Já não se viam ali a dona-de-casa perfeita nem a assassina profissional. No lugar delas, Anahí.

Apenas uma mulher.

Minha mulher.

Quanto tempo fazia que eu não olhava para ela, de verdade, sob a Luz da manhã?

Tivemos de rir diante do absurdo da situação: nós dois ali, juntos, no meio daquele caos. E então ela se jogou nos meus braços.

Ficamos abraçados por um tempo, e eu me senti como um homem que havia acabado de acordar de um pesadelo e descoberto que tudo estava bem. Era o início de um novo dia. E tínhamos a liberdade de recomeçar do zero. Pensando bem, nossa situação era bem engraçada.

— E então, como vai o mercado da informática? — perguntei, oferecendo-lhe alguns pedaços de fruta.

Ela riu e escolheu uns suculentos cubos de pêssego.

— Não faço a menor ideia. E o mercado de construção?

— Só Deus sabe — respondi.

Anahí sorria quase timidamente. Senti um desejo incontrolável de dizer quanto ela estava linda.

— Aquele seu jab de esquerda... — brinquei. — Nada mal.

— Obrigada — ela respondeu. — Seu queixo é que é irresistível. Pisando na ponta dos pés, Anahí atravessou o chão de cacos e talheres retorcidos à procura de uma xícara de café.

Depois se virou para mim com uma interrogação no olhar.

— Naquelas nossas férias em Aspen, quando você precisou voltar mais cedo... Ah, sim.

— Jean-Luc Gaspard — confessei.

Ela balançou a cabeça e disse:

— Puxa, esse eu queria pra mim.

— Os banhos de quarenta e cinco minutos todas as manhãs? — perguntei.

— Contatos com o escritório — ela confessou.

Anahí escorregou em algum tempero derramado, mas logo recuperou o equilíbrio e deu uma sonora risada. Caramba, como ela estava diferente! Tão relaxada, tão graciosa... Tão livre!

— Naquele nosso aniversário de casamento — perguntei —, você não ouviu quando cheguei para jantar de helicóptero?

— Não.

Fiquei surpreso.

— Não?

— Granada de percussão — ela explicou, apontando para os ouvidos. — Perda temporária da audição.

Eu sabia muito bem o que era isso.

Por fim, Anahí encontrou a única xícara que não havia se quebrado naquela cozinha e foi até a pia para lavá-la. Mas a meio caminho parou e fez uma careta de dor. Olhou para baixo e retirou um caco de vidro da sola do pé.

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